(Autor: Bispo José Ildo Swartele de Mello)
Profecias do Antigo Testamento se cumprindo em Cristo
Concordo com Howard Snyder quando ele afirma que o tema do Reino de Deus é uma categoria central que serve como uma chave que abrange, liga e mantêm unidos em harmonia todos os demais temas da revelação bíblica.i O Primeiro sermão de Jesus foi sobre o Reino de Deus (Mc 1.14). Jesus veio como o Messias proclamando o Reino e provocando um verdadeiro alvoroço. Durante seu ministério terreno, ele falou mais sobre o Reino do que sobre qualquer outro tema, mas seus discípulos tiveram muita dificuldade em entender a natureza deste reino. Jesus disse que o Reino era a chave para que os discípulos pudessem compreender os seus ensinos (Lc 8.10). E, no Sermão do Monte, Jesus disse que o Reino era a primeira coisa que os discípulos deveriam buscar (M6 6.33). E, na oração do “Pai Nosso” a primeira coisa que Jesus ensinou que devíamos pedir era: “venha o teu Reino” (Mt 6.10). Após sua ressurreição, antes de ascender aos céus, Jesus passou 6 semanas com os discípulos concentrando-se no ensino do Reino (At 1.3). Jesus abriu os olhos dos discípulos para como sua vida e ministério estavam cumprindo as Escrituras do Antigo Testamento (Lc 24.44-47). A Bíblia está repleta de ensinamentos sobre o Reino de Deus, mas a Igreja, de um modo em geral, tem se esquecido disto. Precisamos resgatar a consciência cristã do Reino de Deus. É errado dizer que Paulo não fala sobre o tema do Reino de Deus. Pois Paulo fala do Reino de Deus em termos do plano soberano de Deus realizado em Cristo Jesus (Ef 1.10) e fala também em termos de “estar em Cristo” assentados nos lugares celestiais (Ef 2.6), onde Cristo está assentado à direta da Majestade, “acima de todo principado e potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir, não só no presente século, mas também no vindouro. E pôs todas as coisas debaixo dos pés, e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à Igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas.” (Ef 1.20-23). Snyder observa neste texto que “Deus optou por colocar a Igreja com Cristo bem no centro de seu plano de reconciliar o mundo consigo”.ii E Paulo também fala do Reino de Deus toda vez que toca no tema do senhorio de Cristo. Concordo com Hermann Ridderbos que, em seu clássico: “Paul: An Outline of His Theology”, afirma que o aspecto fundamental da pregação do apóstolo Paulo que nos habilita a entender todos os demais aspectos de sua teologia é o ensino escatológico sobre a história da redenção.iii Pois Paulo tinha a consciência de que Deus estava, em seus dias, cumprindo as antigas promessas dos profetas de Israel. Lucas encerra o Livro de Atos contando-nos que Paulo estava “pregando o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo (At 28.31).
Precisamos descobrir, como recomenda Snyder, que é possível aprendermos mais sobre o Reino de Deus quando nós vemos as Escrituras como a história do plano de Deus para restaurar a criação caída, trazendo tudo o que Deus fez, mulheres e homens e totalidade de seu meio ambiente, o que inclui toda a criação, para o cumprimento de seu propósito de colocar todas as coisas debaixo de seu soberano reinado.iv Snyder apresenta sete temas que perpassam toda a Bíblia e que lançam luz sobre o Reino de Deus. São eles a paz, a terra, a casa (templo), cidade, justiça, sábado e o ano do Jubileu. Ele trata de cada um destes temas começando pelo pano de fundo do Antigo Testamento e mostrando seu desenvolvimento no Novo Testamento. Poderia apresentar aqui um resumo de como Snyder trata cada um destes temas, mas, creio que é suficiente para este trabalho, com intuito de demonstração, tocar em apenas um destes sete temas, que é o tema da paz. Shalom é usualmente traduzida por paz. A raiz significa plenitude de vida, segurança e bem estar. Significa mais do que ausência de conflito e mais do que mero sentimento de paz interior, pois não se trata de algo meramente abstrato ou espiritual, mas, sim, a algo concreto, material e físico. Implica num senso de harmonia advindo de uma correta relação com Deus, num apropriado funcionamento de todos os elementos do meio ambiente. Deus é a fonte desta paz. O plano de Deus é trazer completa paz para a sua criação, promovendo a reconciliação do homem com Deus, com seu próximo e com todo o restante da criação. Este tema da paz estava ligado a pessoa do Messias no Antigo Testamento. Isaías falou do Messias como o Príncipe da Paz que aumentaria o seu governo de paz sem fim (Is 9.6-7). Observe como Jeremias relaciona a paz à cura: “eis que lhe trarei a ela saúde e cura e os sararei; e lhes revelarei abundância de paz e segurança” (Jr 33.6). Pois, ao trazer paz, Deus está trazendo cura e restauração em todas as dimensões, tanto físicas, quanto espirituais. No Novo Testamento, Paulo, por exemplo, afirma com instância que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14.17). Vemos que o tema da paz está ali, bem no coração do Reino de Deus. O Novo Testamento conecta o tema da Paz diretamente a pessoa do Rei Jesus Cristo. Quando os anjos anunciaram o nascimento de Jesus, eles disseram: “Paz na terra!” como um resultado do nascimento do Messias (Lc 2.14), pois Jesus é o Príncipe da Paz (Is 9.6). Jesus é a nossa paz. Através dele, nós fomos reconciliados com Deus e com o próximo. As barreiras da inimizade foram derribadas em Cristo. Paulo declara isto com todas as letras em Ef 2.14-17: “Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos {ambos: judeus e gentios} fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto”.
Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo (2 Co 5.19 e Ef 1.10). Reconciliação significa fazer as pazes (Cl 1.19-20). A paz é relacional: “paz com” e “paz entre”. Deus nos conferiu o ministério da reconciliação (2 Co 5.18). Jesus disse: “Bem-aventurados os pacificadores” (Mt 5.9). Os cristãos, como povo do Reino, não abenas são objetos da paz de Deus, mas tornam-se também instrumentos de sua paz. Neste sentido, vemos que a Igreja herda a mesma missão de Cristo. Jesus disse aos seus discípulos: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20:21). Voltando a falar da natureza paradoxal do Reino de Deus decorrente da tensão entre o já e o ainda não, temos esta interessante frase de Jesus aos seus discípulos: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16:33). A poderosa Paz que o Senhor Jesus traz ainda não significa ausência de aflições, isto só acontecerá quando da Segunda Vinda. Jesus quer que seus discípulos sejam realistas quando as aflições deste mundo. Mas tal realismo deve ser contrabalançado pela poderosa realidade de que Cristo venceu o mundo! A vitória de Cristo sobre o mundo concede aos discípulos um bom ânimo e paz. Vemos aqui que a realidade do mundo não pode sufocar o otimismo proveniente da confiança naquele que venceu o mundo e que é Senhor da história.
A Paz de Deus se estende aos conflitos existentes entre as nações. Gênesis, no relato de Babel, (capítulo 11), mostra a confusão de línguas promovendo a formação e a separação das nações. No capítulo 12, Deus começa a agir para cura deste mal, chamando da região de Babel, a Abrão com a missão dele se tornar bênção para todas as famílias da terra (Gn 12.3; 28.14). O Livro de Gênesis mostra como José, neto de Abraão, é usado por Deus para abençoar o Egito e diversas outras nações vizinhas (50.19-10). Mas, de um modo em geral, Israel não foi fiel ao seu chamado de ser bênção para as outras nações, chegando a ser maldição em lugar de bênção (Zc 8.13; Jr 4.4). No entanto, Deus é fiel, e a promessa e a missão dadas a Abrão serão cumpridas em um seu descendente muito especial (Gl 3.7, 16; Rm 4.10-18), que veio como o Príncipe da Paz (Is 9), desfazendo as barreiras da separação e da inimizade (Ef 2), formando uma nova humanidade (1 Pe 2.4-10), onde não há mais lugar para distinções nacionais, tribais, ou de qualquer outra espécie como disse Paulo: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3:28). A Igreja recebe missão semelhante à de Abraão, devendo levar a bênção do Evangelho do Reino a todas as nações até os confins da terra (Mt 29.19-20 e At 1.8). O mesmo Senhor que diz “vinde a mim”(Mt 11.28), diz também “ide” por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura (Mc 16.15), e ora ao Pai para que sua Igreja não seja tirada do mundo (Jo 17.15), pois sabe que ela tem uma importante missão a cumprir aqui na Terra antes da manifestação gloriosa do Filho de Deus. A Igreja experimenta, no dia de Pentecoste, através da plenitude do Espírito Santo, um fenômeno de línguas que se contrapõe ao fenômeno de Babel. Pois, enquanto em Babel temos a confusão de línguas, que separam as nações, em Pentecostes, temos uma “língua universal” que pode ser compreendida por pessoas representantes de distintas nações da Terra, o que gerou conversão e unidade num efeito reverso ao de Babel, que havia promovido dispersão e desunião. Jesus promete que sua Igreja será bem sucedida em sua missão de pregar o Evangelho a todas as nações (Mt 24.14; Mc 13.10; cf Mt 16.18; Hc 2.14). O Livro de Apocalipse mostra como Cristo e sua Igreja serão bem sucedidos em sua missão de formar um grande povo com convertidos de todas as nações, povos, tribos, línguas e raças (Ap 7.9), e diz ainda que Jesus será conclamado “Rei das Nações” (Ap 15.3), e será adorado por todas as nações (15.4), como o Rei dos reis e Senhor dos senhores (Ap 19.16. cf 1 Tm 6.15).
Portanto, a promessa da Paz que encontramos no Antigo Testamento se cumpre em Cristo, que é o “sim” e o “amém” de Deus pronunciado sobre cada uma das promessas registradas no Antigo Testamento: “Porque quantas são as promessas de Deus, tantas têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus, por nosso intermédio” (2 Co 1:20). A Igreja, como corpo de Cristo e comunidade do Rei, recebeu o ministério da reconciliação e é continuadora da missão de Cristo. Para que seja eficaz em seu ministério a Igreja precisa servir de modelo do Reino de Deus que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Se não, como poderá uma Igreja pregar a paz a um mundo onde há tantas inimizades e guerras, quando ela mesmo está fragmentada e quando os seus próprios membros não conseguem viver em paz e em unidade uns com os outros, e quando há ainda tanta inimizades, discriminação, racismo, preconceitos sociais, falta de perdão, ciúmes, contendas, fofocas e divisões no seio da Igreja?
Como já dissemos, esta abordagem da paz, serve como exemplo do que se pode ver também com outros elementos pertencentes ao Reino de Deus que permeiam todas as Escrituras, e que encontram o seu cumprimento em Cristo. Juan Stamv também defende a integridade das Escrituras, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, salientando a interrelação dos temas bíblicos e sua continuidade desde Gênesis até o livro de Apocalipse. Apresenta cinco temas que envolvem toda a mensagem da Bíblia: criação, a promessa a Abraão, o Êxodo, Davi e a promessa do Reino e finalmente o Messias em quem se cumprem todas as promessas e expectativas bíblicas. Por exemplo, a criação marca a Bíblia da primeira a última página, onde conseguimos ver nitidamente a preocupação e o propósito de Deus em relação à natureza. A obra redentora de Jesus engloba toda criação, que, atualmente, geme, sofrendo as conseqüências do pecado humano, aspirando ser renovada e redimida. A promessa é de novos céus e nova terra onde reinam o amor e a justiça. Nós os cristãos já somos novas criaturas, primícias da nova criação; "sal" e "luz" para o mundo, "semente" e "fermento" do Reino de Deus. Somos herdeiros da promessa e responsabilidade de Abraão de sermos bênção para todas as nações. Myers faz uma observação interessante quando diz que o Êxodo é o relato da passagem da escravidão para a liberdade, da injustiça para um sociedade justa (pelo menos este foi o propósito), e da dependência para independência, da opressão na terra alheia para a liberdade na própria terra, que foi distribuída com justiça para que todos pudessem ter condições de desfrutar do fruto do seu próprio trabalho.vi E Juan Stam conclui seu argumento afirmando que o Êxodo é a chave para a compreensão de toda a Bíblia. E passa demonstrar os paralelos entre o Êxodo de Israel e a obra redentora de Cristo, falando sobre as implicações sociais do Êxodo, como, por exemplo, o "Ano da Remissão" e o "Ano do Jubileu", que nunca foram cumpridas devidamente em Israel, tem seu cumprimento em Cristo, o ungido de Deus. No sermão inaugural de seu ministério, Cristo afirmou ser o cumprimento da promessa de Isaías 61. O dom do Espírito Santo também é derramado sobre a Igreja e é muito interessante observarmos os desdobramentos sociais que lembram o "Ano do Jubileu"vii (ver também Gl 2.10; At 11.27-29; 1 Co 16.14; Rm 15.25s; At 20.22s, 21.814; 2 Co 8.14; 9.9 cf. Mt 6.1).
Veremos a seguir a questão do Mistério do Reino de Deus que se revela em Cristo de modo a surpreender as expectativas do Antigo Testamento.
i Snyder, Howard A. Kingdom, Church, and World: Biblical themes for today. Wipf and Stock Publishers. Eugene, Oregon, 2001, 132 p. P. 11, 12.
ii Snyder, Howard A. A Comunidade do Rei: Uma reflexão sobre a Igreja que Deus quer. Tradução: Lucy Yamakami. São Paulo: ABU, 2004, P. 70.
iii Herman Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1975)
iv Snyder, Howard A. Kingdom, Church, and World: Biblical themes for today. Wipf and Stock Publishers. Eugene, Oregon, 2001, 132 p. P.17.
v Steuernagel, Valdir Raul, org. A Missão da Igreja. Belo Horizonte, 1994, parte A1. o primeiro capítulo: "A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E A MISSÃO DA IGREJA", escrito por Juan Stam.
vi Myers, Bryant L. Caminar con Los Pobres. Manual teórico-prático de desarrollo transformador. Buenos Aires: Kairós. 2002. P.33.
vii Steuernagel, Valdir Raul, org. A Missão da Igreja. Belo Horizonte, 1994, parte A1. o primeiro capítulo: "A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E A MISSÃO DA IGREJA", escrito por Juan Stam.
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