domingo, 29 de junho de 2025

O Estado Eterno Não É Meramente Espiritual?


Será que o plano eterno de Deus se limita à salvação das almas?


Por Bispo Ildo Mello

Essas perguntas desafiam uma teologia fragmentada, muitas vezes influenciada por ideias platônicas ou por visões espiritualistas, que desprezam o mundo físico. No entanto, a Bíblia nos apresenta uma narrativa muito mais abrangente: da criação à nova criação, o plano de Deus envolve a totalidade da realidade — céu e terra, homem e natureza, corpo e espírito.

Este artigo propõe uma visão profundamente bíblica e teológica: Deus não se interessa apenas pelas almas humanas, mas por toda a criação que Ele ama, sustenta e há de redimir por meio de Jesus Cristo.


1. O Projeto Original de Deus e o Valor da Criação

Desde o princípio, Deus contemplou a obra de Suas mãos e declarou: “eis que era muito bom” (Gn 1.31). O mundo material foi criado com intenção, beleza e propósito. Ao contrário da ideia platônica de que a matéria é inferior ou má, a Bíblia mostra que Deus Se deleita na criação. O Seu cuidado não se restringe às almas humanas: Ele expressa compaixão pelos animais (Jn 4.11), sustenta todas as coisas com Sua providência (Sl 104) e se importa com o cosmos como um todo (Ef 1.10; Cl 1.20). 

O ato criador de Deus foi o início de uma história contínua. A criação é viva, interligada e dinâmica — uma expressão da sabedoria divina (cf. Sl 104; Jó 38–39). Deus não criou e abandonou o mundo: Ele continua sustentando todas as coisas pelo poder da sua palavra (Hb 1.3).
“O Senhor é bom para com todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras” (Sl 145.9).
“Não hei de Eu ter compaixão… também de muitos animais?” (Jn 4.11).
Esses textos deixam claro: a preocupação de Deus não é apenas com os seres humanos, mas com todas as criaturas. Negar isso é reduzir a majestade e a abrangência do amor de Deus.

2. A Queda e a Esperança da Redenção Cósmica

Desde o princípio, Deus confiou ao ser humano a responsabilidade de administrar e cuidar da criação (Gn 1.26–28; 2.15). No entanto, com a queda de Adão, o pecado rompeu não apenas a comunhão entre o homem e Deus, mas também a harmonia entre o homem e a terra. A maldição atingiu o solo (Gn 3.17), os relacionamentos foram distorcidos, e toda a ordem criada passou a sofrer as consequências. O apóstolo Paulo descreve essa realidade em termos cósmicos: “toda a criação geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.22), sujeita à vaidade e à corrupção, enquanto aguarda ansiosamente “a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8.19). A própria criação, afirma Paulo, será “libertada da escravidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21).
Essa expectativa revela que a salvação proposta por Deus é holística: não se limita ao resgate de almas individuais, mas abrange a restauração de tudo o que foi afetado pela queda. Deus não abandonou o mundo físico ao fracasso. Pelo contrário, firmou com a criação uma aliança eterna (Gn 9.9-10), reafirmada sete vezes, que inclui não apenas a humanidade, mas “toda criatura vivente” sobre a terra. Trata-se de uma aliança tripla: entre Deus, o ser humano e toda a criação.
A narrativa bíblica começa com a criação e culmina na nova criação. Entre esses dois extremos se desenrola o drama da redenção. A doutrina da salvação não pode ser plenamente compreendida sem a doutrina da criação. O mesmo Deus que criou todas as coisas com sabedoria e beleza continua a sustentá-las, preservá-las e há de renová-las. O plano eterno é “fazer convergir em Cristo todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Ef 1.10; cf. Cl 1.20). Assim, a esperança cristã não é apenas espiritual, mas também material, não apenas celestial, mas também cósmica — a restauração completa do universo para a glória de Deus.


3. Restauração e Renovação de Toda Criação

O juízo final descrito em 2 Pedro 3 não é destruição absoluta, mas purificação e transformação, como aconteceu no dilúvio (2Pe 3.6-13).
Pedro compara o juízo de fogo ao dilúvio: o mundo foi “destruído” pelas águas (2Pe 3.6), mas não deixou de existir — foi renovado. Do mesmo modo, “os céus que agora existem e a terra… estão reservados para o fogo” (2Pe 3.7), para que surjam “novos céus e nova terra” (2Pe 3.13). Isso é confirmado pela declaração divina: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.5). Trata-se de purificação, não de aniquilação.

A terra não será descartada, mas renovada para a glória de Deus. Por isso, o Apocalipse denuncia aqueles que destroem o planeta: “É tempo de destruir os que destroem a terra” (Ap 11.18).

4. A Ressurreição Implica em que a Salvação Também é Física

Jesus não ressuscitou como espírito. Ele pediu peixe e comeu com os discípulos (Lc 24.39-43). Sua ressurreição foi física e glorificada — e assim será a nossa (1Co 15.20,44; Fp 3.21).
Corpos glorificados pressupõem uma criação glorificada. O Novo Testamento aponta para uma realidade concreta: céus e terra renovados, e não um céu sem corpo ou sem terra. A salvação é encarnada — como o próprio Cristo. 

5. A Nova Terra Será o Lugar da Habitação de Deus

A Nova Jerusalém não é o lugar para onde vamos fugir, mas a cidade que desce do céu (Ap 21.2-3). Ela simboliza a união plena entre Deus e a criação.
“O tabernáculo de Deus está com os homens… Ele habitará com eles” (Ap 21.3).
“Verão a sua face… e reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22.4-5).
A eternidade será vivida com corpo, comunidade, cultura redimida — e uma terra restaurada. Não é um retorno ao estado espiritual puro, mas uma elevação gloriosa da criação material à plenitude do Reino.

A Escritura afirma claramente que Cristo virá uma segunda vez (Tt 2.11-13; Mc 13.26-27), mas nunca fala de uma segunda ascensão. Após subir aos céus diante dos apóstolos, os anjos disseram: “Esse Jesus… há de vir assim como… o vistes ir” (At 1.11). Ele voltará, não para ir embora novamente, mas para habitar para sempre com Seu povo (1Ts 4.16-17). Isso demonstra que a nova era não será marcada por distanciamento, mas pela permanência definitiva de Deus com os redimidos. O estado eterno não é uma evasão da matéria, mas a glorificação dela.

6. A Aliança de Deus com a Terra e a Nossa Responsabilidade

A aliança de Deus com a terra exige de nós responsabilidade. O justo cuida dos animais (Pv 12.10). Deus espera que o povo administre a terra com sabedoria (Gn 2.15). A preocupação ambiental não é ideológica — é teológica e bíblica!
“Louvem o Senhor pela boa terra que lhes deu” (Dt 8.10).
Cuidar da criação é um ato de adoração e obediência. Como discípulos de Cristo, somos chamados a viver de forma contracultural, revelando a esperança do Reino por meio de nossas atitudes em relação ao mundo criado.

7. A Reconciliação de Todas as Coisas em Cristo

O pecado alienou o homem de Deus, do próximo e da terra. Mas a salvação em Cristo visa restaurar essa harmonia:
“Por meio dEle, reconciliar consigo mesmo todas as coisas” (Cl 1.20). “Deus será tudo em todos” (1Co 15.28).
A palavra shalom resume isso: plenitude, paz, saúde, vida abundante — para o homem, a terra e a criação. Esse é o estado eterno bíblico: reconciliação total, gloriosa e permanente.
No estado eterno, “nunca mais haverá qualquer maldição” (Ap 22.3). A maldição imposta após o pecado (Gn 3.17-19) será completamente removida por Cristo, que “se fez maldição por nós” (Gl 3.13). Não haverá mais morte, luto, dor ou separação (Ap 21.4). A árvore da vida — símbolo do Éden — estará novamente acessível, agora sem restrição. A nova criação será ainda mais gloriosa que o Éden original, pois toda a história terá sido redimida. A presença de Deus será plena e ininterrupta.

Conclusão:

A visão bíblica do estado eterno não é uma fuga para o céu, mas a vinda do céu à terra.
A eternidade será vivida com Cristo no centro, em um mundo restaurado, onde a terra, o povo e Deus vivem em harmonia.
“Seja feita a tua vontade… na terra como no céu” (Mt 6.10). 
Enquanto aguardamos esse dia, somos chamados a antecipá-lo: vivendo com fidelidade, cuidando da criação, promovendo justiça, e anunciando o evangelho que transforma tudo.
A eternidade já começou — viva como cidadão da nova criação.

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