A Pneumatologia de John Wesley e os Dons Espirituais
Introdução
John Wesley (1703–1791), o fundador do movimento metodista, desenvolveu uma teologia do Espírito Santo (“pneumatologia”) profundamente entrelaçada com sua visão da salvação e santidade cristã. Em meio ao Iluminismo do século XVIII e à influência do anglicanismo, Wesley abordou os dons espirituais (ou charismata) de forma distinta e equilibrada. Ele viveu num contexto em que muitos teólogos protestantes cessacionistas afirmavam que os milagres e dons extraordinários haviam cessado após a era apostólica, enquanto outros grupos alegavam revelações e manifestações que beiravam o fanatismo. Wesley navegou entre esses extremos: afirmou a continuidade da obra sobrenatural do Espírito em todos os tempos, ao mesmo tempo em que priorizou a santidade e a ordem, rejeitando abusos “entusiásticos”.
Este estudo examina a pneumatologia de John Wesley e sua visão dos dons espirituais a partir de fontes primárias (sermões, cartas, diários de Wesley) e fontes secundárias confiáveis (literatura metodista e estudos recentes). Inicialmente, situa-se Wesley em seu contexto histórico-teológico. Em seguida, analisa-se o desenvolvimento doutrinário de suas ideias sobre o Espírito Santo e os dons, incluindo o equilíbrio que Wesley faz entre dons “extraordinários” e os dons ou operações “ordinárias” do Espírito. O estudo prossegue com uma comparação entre a perspectiva wesleyana e outras tradições teológicas relevantes – incluindo o cessacionismo reformado clássico, a teologia pentecostal/carismática moderna e, quando pertinente, as visões católica e ortodoxa. Por fim, exploram-se as implicações práticas para a igreja contemporânea, considerando como as igrejas podem discernir os dons congregacionalmente, formar teologicamente pastores e fiéis sobre esses temas, e aplicar a “hermenêutica da santidade” de Wesley nos dias de hoje. Espera-se, assim, iluminar como Wesley entendia o Espírito Santo e os dons espirituais, e quais lições sua visão oferece para a prática e teologia cristã atual.
Contexto Histórico-Teológico de Wesley
O cenário do século XVIII e o “entusiasmo”
John Wesley desenvolveu sua teologia em meio ao século XVIII, um período marcado de um lado pelo racionalismo iluminista e, de outro, por movimentos de renovação espiritual. Na Igreja da Inglaterra (anglicana) – da qual Wesley era clérigo – prevalecia uma atitude cautelosa, quando não cética, em relação a relatos de milagres e manifestações extraordinárias do Espírito. Alegações de profecias, curas ou línguas eram frequentemente rotuladas de “entusiasmo” – termo pejorativo na época, associado a fanatismo religioso e desequilíbrio emocional. Líderes e pensadores importantes advertiam contra “pretender dons extraordinários do Espírito Santo”. Por exemplo, o Bispo anglicano Joseph Butler, num encontro célebre em 1739, afirmou a Wesley: “Senhor, fingir revelações e dons extraordinários do Espírito é algo horrendo”. Wesley respondeu prontamente negando qualquer pretensão a dons extraordinários pessoais, dizendo que não reivindicava nada além do que “todo cristão pode receber e deve esperar” – ou seja, as graças e operações comuns do Espírito na salvação. Essa réplica ilustra a postura de Wesley: ele não se via como profeta milagreiro, mas também não aceitava a ideia de que o Espírito Santo estivesse ausente da vida da igreja.
Wesley encarou também opositores intelectuais do sobrenatural. Conyers Middleton, um erudito influente, publicou em 1748 um tratado negando a ocorrência de milagres após o período apostólico. Middleton argumentava que os relatos dos Pais da Igreja sobre feitos milagrosos eram fraudulentos ou fruto de credulidade, e insinuava até que os próprios milagres de Cristo e dos apóstolos poderiam ser postos em dúvida. Wesley tomou para si o desafio de refutar Middleton. Em 1749, ele escreveu A Letter to the Rev. Dr. Conyers Middleton (Uma Carta ao Rev. Dr. Conyers Middleton), confrontando ponto por ponto o cessacionismo radical de Middleton. Wesley rejeitou com veemência a ideia de que “não houve milagres na Igreja primitiva” e que “todos os Pais da Igreja foram tolos ou impostores”. Ele via essa postura como uma ameaça à própria fé nos milagres bíblicos. Wesley, portanto, publicamente defendeu a continuidade dos milagres pós-bíblicos, ainda que reconhecendo a sua diminuição depois dos primeiros séculos (conforme veremos). Essa polêmica ilustra a tensão no período: de um lado, o deísmo racionalista e o ceticismo protestante desprezavam o sobrenatural; de outro, avivalistas como Wesley insistiam que Deus continuava a agir.
Influências teológicas e experiências pessoais
Wesley foi teologicamente influenciado por diversas correntes. Como anglicano, ele prezava a herança dos Pais da Igreja (especialmente os primeiros séculos cristãos) e estava familiarizado tanto com a teologia ocidental (Agostinho) quanto com tradições orientais (ele valorizou, por exemplo, ideias de santificação próximas à noção ortodoxa de theosis, a deificação pela graça). Wesley leu sobre os milagres narrados por escritores antigos e medievais. Notavelmente, ele confessou ter ficado convencido de que muitos cristãos dos séculos II e III (por exemplo, os montanistas) realmente experimentaram os dons do Espírito. Em seu Journal (diário), na entrada de 15 de agosto de 1750, Wesley escreveu: “Fiquei plenamente convencido do que há muito suspeitava: (1) que os montanistas, nos séculos II e III, foram cristãos genuínos e bíblicos; e (2) que a grande razão pela qual os dons miraculosos foram logo retirados não foi apenas que fé e santidade quase se perderam, mas que homens formais, frios e ortodoxos começaram já então a ridicularizar os dons que eles mesmos não possuíam, desacreditando-os como loucura ou embuste”. Essa declaração reveladora mostra Wesley criticando tanto a decadência espiritual interna da igrejaquanto a hostilidade dos céticos “formalistas” como fatores para o declínio dos dons.
Outra influência importante foi o Pietismo e os Morávios. Wesley encontrou-se com os morávios (discípulos de Zinzendorf) durante sua viagem às colônias americanas e em Londres. Dos morávios, ele aprendeu sobre a ênfase na experiência do novo nascimento e no testemunho interior do Espírito. Embora os morávios não enfatizassem dons carismáticos espetaculares, eles cultivavam uma profunda vida no Espírito, o que confirmou em Wesley a convicção de que o cristão podia ter “sensações espirituais” reais da graça de Deus. A famosa experiência do “coração aquecido” de Wesley em Aldersgate (1738), quando sentiu-se interiormente assegurado do perdão de Deus, ilustra o tipo de vivência espiritual que ele considerava central – uma obra do Espírito Santo no íntimo, não necessariamente acompanhada de sinais externos milagrosos.
Contudo, o ministério prático de Wesley nos avivamentos frequentemente foi marcado por manifestações incomuns. Durante pregações ao ar livre e reuniões metodistas, havia relatos de pessoas caindo ao chão sob convicção, chorando convulsivamente, ou experimentando alegria exuberante. Wesley abordou esses fenômenos caso a caso, sem encorajá-los explicitamente, mas também sem rejeitá-los automaticamente. Ele os interpretava como possíveis efeitos do Espírito agindo nas consciências e corpos das pessoas. Além disso, registrou casos de cura em resposta à oração e até episódios de suposta libertação de espíritos malignos (exorcismos) em seus diários. Tais ocorrências levaram críticos a acusá-lo de incentivar “excessos”. Mas Wesley mantinha uma posição de equilíbrio: não promovia o sensacionalismo, tampouco sufocava o que poderia ser obra de Deus. Essa atitude mediadora refletia-se também em seus sermões e escritos doutrinários.
Em suma, Wesley desenvolveu sua pneumatologia num contexto onde precisava demarcar um caminho entre o ceticismo reformado clássico que desprezava os dons contínuos, e o entusiasmo extremo de alguns movimentos radicais. O pano de fundo do século XVIII – de frieza religiosa institucional de um lado e fervor avivalista de outro – formou a arena na qual Wesley formulou suas ideias sobre o Espírito Santo e Seus dons. A seguir, examinaremos como essas ideias se estruturaram doutrinariamente na obra de Wesley.
O Desenvolvimento Doutrinário: Wesley sobre o Espírito Santo e os Dons
A pneumatologia de Wesley: Espírito Santo e salvação
No coração da teologia de Wesley está a convicção de que toda a vida cristã é obra do Espírito Santo, desde o início até a perfeição. Sua pneumatologia é fortemente trinitária e orientada para a salvação (via salutis). Wesley entendia que as várias etapas da graça – graça preveniente, justificação/regeneração e santificação – são diferentes expressões da ação do Espírito de Deus na alma humana. Ele chegou a afirmar que “a teologia da graça é, de fato, uma teologia do Espírito Santo”, visto que é o Espírito quem aplica os méritos de Cristo em nós, vencendo nossa natureza pecaminosa e conformando-nos à imagem divina.
Um conceito central em Wesley é o “testemunho do Espírito”. Trata-se da certeza interior que o Espírito Santo dá ao crente de que ele é filho de Deus. Wesley pregava que esse testemunho direto do Espírito ao nosso espírito não era algo extraordinário ou restrito a alguns místicos, mas parte da “simples e autêntica cristandade” disponível a todos os nascidos de novo. Essa certeza é acompanhada pelos “frutos do Espírito” (especialmente amor, alegria, paz, e santidade de vida). Assim, já vemos um padrão: Wesley considera normativo aquilo que é necessário para a salvação e santidade (por exemplo, arrependimento, novo nascimento, fruto do Espírito), e considera extraordinário o que não é essencial para esses propósitos, ainda que seja dado em alguns casos para edificação da Igreja.
Wesley também empregou a ideia de “sentidos espirituais” para explicar como o crente percebe as realidades divinas. Em seu tratado An Earnest Appeal to Men of Reason and Religion, ele argumenta que, assim como possuímos cinco sentidos naturais para o mundo material, os regenerados recebem sentidos espirituais (pela habitação do Espírito) que os capacitam a experimentar a graça de Deus. Ele descreve a fé como “o olho da alma nascida de novo”, capaz de ver a luz de Cristo, e como “o ouvido da alma” para ouvir a voz de Deus. Essa epistemologia pneumática em Wesley mostra que experiência espiritual era componente legítimo de seu pensamento – um contraste marcante com a ênfase puramente racional de muitos de seus contemporâneos. No entanto, mesmo aqui Wesley manteve o foco soteriológico: os sentidos espirituais servem para receber e saber que Deus salva e santifica, não para buscar êxtases aleatórios. Ele enfatizou que “o testemunho do Espírito não é algo extraordinário ou ocasional, mas parte do cristianismo essencial”.
Portanto, Wesley definia claramente uma distinção entre a operação ordinária e a extraordinária do Espírito. A operação ordinária refere-se a tudo que pertence à salvação de qualquer crente (convicção de pecado, fé salvadora, novo nascimento, santificação, consolação do Espírito etc.), coisas que “são essenciais a todos os cristãos em todas as eras”. Já as manifestações extraordinárias – tais como milagres físicos e dons sobrenaturais (curas, profecias, línguas) – não são prometidas a todos nem indispensáveis à essência da vida cristã. Wesley repetidamente recusou-se a “confundir as operações extraordinárias com as ordinárias do Espírito”. Em sua visão, a maior obra do Espírito é a santificação e a renovação do coração, algo acessível a todos os fiéis, enquanto os dons miraculosos são dádivas específicas, concedidas “a alguns, em algumas épocas, conforme a sabedoria de Deus”.
Wesley e os dons extraordinários do Espírito
Embora Wesley desse primazia à obra santificadora do Espírito, ele não era cessacionista. Pelo contrário, Wesley acreditava que os dons carismáticos mencionados no Novo Testamento continuaram a existir após a era apostólica – ainda que com menor frequência – e poderiam, em teoria, ocorrer em sua própria época. Em seu sermão 89 “O Caminho Sobremodo Excelente” (1748, sobre 1Coríntios 12:31–13:13), Wesley reconhece abertamente os dons extraordinários do Espírito Santo concedidos à Igreja primitiva: “tais como curar enfermos, profetizar (no sentido de predizer eventos futuros), falar em línguas estranhas nunca estudadas, e interpretar essas línguas por milagre”. Ele afirma que o apóstolo Paulo encorajou os cristãos de Corinto – especialmente os pregadores – a “cobiçar zelosamente esses melhores dons”, pois eles poderiam torná-los mais úteis no ministério. No entanto, Wesley logo destaca que Paulo ensina um “caminho mais excelente”, a saber, o caminho do amor, sem o qual os dons nada aproveitam. Essa ênfase paulina no amor ecoa fortemente na hermenêutica de Wesley: os dons, por mais desejáveis, são secundários em comparação com a caridade e a santidade de vida.
Importante observar é a análise histórica que Wesley faz nesse sermão sobre o desaparecimento (ou diminuição) dos dons milagrosos após os primeiros séculos. Ele declara: “Não parece que esses dons extraordinários do Espírito Santo fossem comuns na Igreja por mais que dois ou três séculos. Raramente os ouvimos mencionados depois daquela época fatídica em que o imperador Constantino... encheu de riqueza, poder e honra os cristãos em geral e em particular o clero. Daí em diante, [os dons] quase totalmente cessaram; há pouquíssimos casos do tipo”. Ou seja, Wesley localiza a quase-cessação dos dons por volta da oficialização do cristianismo no Império Romano (séc. IV), conectando-a à corrupção da fé que veio com a institucionalização e riqueza. Ele rejeita explicitamente a explicação comum de que os dons cessaram porque “já não eram necessários quando o mundo se tornou cristão” – Wesley chama isso de “um erro deplorável; nem a vigésima parte do mundo era então cristã nem mesmo de nome”. Em vez disso, ele atribui a cessação à causa real: “o amor de muitos – quase de todos os chamados cristãos – esfriou”. Os cristãos, diz Wesley, haviam “perdido o Espírito de Cristo” a tal ponto que, se o próprio Senhor examinasse a Igreja, dificilmente acharia fé verdadeira na terra. Essa foi a causa real pela qual os dons extraordinários deixaram de se manifestar amplamente: “os cristãos se tornaram pagãos de novo, e lhes restou apenas a forma morta [da religião]”.
Com essa análise, Wesley deixa claro que Deus não retirou arbitrariamente os dons – foi a igreja que se afastou da dinâmica espiritual necessária para recebê-los. Ele concorda até certo ponto com a sugestão de alguns Pais (como João Crisóstomo) de que a falta de fé e virtude na Igreja resultou na raridade de milagres. Assim, Wesley mantinha a possibilidade dos dons continuarem em qualquer época “até a restauração de todas as coisas” (isto é, até a consumação final), conforme escreveu em Principles of a Methodist Farther Explained: não há indicação bíblica de que os milagres seriam confinados aos tempos apostólicos ou a qualquer período específico.
Ao mesmo tempo, Wesley não encorajava uma busca frenética por manifestações miraculosas. Ele advertia contra confundir emoção religiosa ou supostos dons com a verdadeira obra do Espírito. Como pastor, Wesley frequentemente examinava relatos de milagres ou profecias com ceticismo santo, procurando evidências de autenticidade.
Um critério fundamental era o fruto espiritual: se uma suposta profecia ou cura resultasse em humildade, arrependimento, salvação de almas e maior santidade, Wesley a consideraria possivelmente genuína; mas se gerasse exibicionismo, orgulho espiritual ou desordem, ele a rotularia como “entusiasmo” equivocado. Ele chegou a dizer que “qualquer coisa além [do ordinário] que seja reivindicada apressadamente ou buscada principalmente é entusiasmo”. Em sua visão, um movimento autêntico do Espírito se discernia não por demonstrações de poder, mas pelo fruto de santidade que produzia. Wesley ensinava que o Espírito Santo poderia sim operar curas ou falar profeticamente, porém essas concessões extraordinárias visavam edificar a igreja e confirmar a mensagem do evangelho, não glorificar indivíduos. Além disso, não eram garantia de condição espiritual elevada – afinal, alguém podia ter dons milagrosos e ainda “ser miserável agora e na eternidade” se faltasse amor e retidão.
Essa postura teológica refletiu-se na prática de Wesley. Ele mesmo nunca reivindicou ter o “dom de curar” ou o “dom de profecia” permanente. Quando confrontado por autoridades acusando-o de se arrogar poderes apostólicos, Wesley foi firme em dizer: “Não pretendo medida extraordinária alguma do Espírito. Nenhuma que não possa ser reclamada por todo ministro cristão... não reclamo dom extraordinário nenhum”. No caso citado pelo Bispo de Gloucester (William Warburton), que criticou Wesley por orar pelos doentes e estes serem curados, Wesley não negou os fatos, mas atribuiu tudo à providência de Deus ouvindo a oração, “ainda hoje respondendo além do curso ordinário da natureza”. Em outras palavras, Wesley reconhecia a realidade de milagres em seu ministério, mas os via como atos soberanos de Deus em resposta à fé, e não como poderes sob seu controle ou mérito pessoal. Ele evitava tanto a falsa modéstia de negar que milagres ocorreram quanto a vanglória de dizer que possuía tal dom.
Em resumo, John Wesley sustentava uma doutrina equilibrada sobre os dons espirituais: Eles não cessaram por decreto divino – a falta deles indica mais a tibieza da Igreja do que um fim da era do Espírito. Entretanto, os dons milagrosos são extraordinários, distribuídos conforme a vontade de Deus e não essenciais para a salvação individual. Wesley valorizou infinitamente mais a obra do Espírito que transforma o caráter (santificação) do que aquela que suspende as leis naturais. Ele ensinou sua congregação a “desejar ardentemente” tudo que Deus quisesse derramar para o bem comum, mas a trilhar acima de tudo o caminho excelente do amor. Esse entendimento nuançado permitiu a Wesley ser ao mesmo tempo um defensor da realidade dos dons espirituais e um guardião da sobriedade e ordem evangélica.
Comparações Teológicas com Outras Tradições
As posições de Wesley sobre pneumatologia e dons espirituais podem ser melhor compreendidas quando colocadas em contraste com outras tradições cristãs relevantes. A seguir, comparamos a perspectiva wesleyana com: (a) o cessacionismo reformado clássico; (b) a teologia pentecostal/carismática moderna; e (c) brevemente, algumas perspectivas das igrejas católica e ortodoxa. Uma visão comparativa evidencia áreas de convergência e divergência, lançando luz sobre a originalidade de Wesley. A tabela abaixo resume alguns contrastes chave:
Aspecto | John Wesley (Metodismo) | Trad. Reformada(Cessacionismo clássico) | Pentecostal/Carismática (Moderna) |
Continuidade dos dons? | Acredita na continuidade teórica dos dons: milagres e carismas podem ocorrer em qualquer época, embora tenham se tornado raros por causa da frieza espiritual da Igreja. | Sustenta a cessação dos dons extraordinários após a era apostólica. Milagres serviram a fundação da Igreja e nãosão esperados como normais depois disso. | Afirma a plena continuidade e atualidade dos dons: milagres, línguas, profecias etc. fazem parte normal da vida da Igreja, sinais da obra presente do Espírito. |
Propósito dos dons | Confirmar e propagar o evangelho nos primórdios da Igreja; edificar a Igreja “para o bem comum” quando concedidos. Contudo, seu propósito é subsidiário à salvação e santidade (o mais excelente caminho do amor). | Confirmar a revelação e autoridade dos apóstolos no início da era cristã. Após estabelecer-se o cânon bíblico, os dons milagrosos teriam cumprido sua função e cessado. Milagres modernos são vistos com suspeita, atribuídos a fraude, engano ou zelo excessivo. | Capacitar a missão da Igreja e fortalecer a fé dos crentes. São vistos como manifestações do poder do Espírito que devemacompanhar a pregação e a vida devocional. Além de edificar, servem de sinais escatológicos(antecipo do Reino de Deus presente entre nós). |
Ênfase principal da pneumatologia | Obra interior do Espírito na salvação e santificação: arrependimento, novo nascimento, testemunho do Espírito e perfeição em amor são centrais e universais. Os dons extraordinários são reais, porém “não necessários para a santidade”. | Obra objetiva do Espírito através da Escritura e dos sacramentos (nas tradições reformadas magisteriais). Enfatiza-se regeneração e iluminação espiritual, mas muita ênfase em manifestações carismáticas é vista como distrativa ou perigosa. Busca-se uma espiritualidade sóbria, focada na Palavra. | Obra empoderadora do Espírito no crente após a conversão. Muitas correntes falam em “Batismo no Espírito Santo” como uma experiência distinta que reveste o crente de poder para testemunhar, geralmente evidenciada pelo dom de línguas ou outras manifestações. A espiritualidade valoriza experiências sensíveis com o Espírito tanto quanto (ou mais que) estruturas formais. |
Atitude quanto a fenômenos espirituais | “Aberto, mas cauteloso” – Wesley aceita a possibilidade de curas, profecias e outros milagres, especialmente em tempos de avivamento, mas exorta ao discernimento rigoroso. Manifestações devem ser avaliadas pelos frutos (santidade e amor gerados) e pela conformidade bíblica. Evita-se sensacionalismo e não se deve correr atrás de sinais por si só. | Geralmente cético ou crítico. Tendência a interpretar alegados milagres atuais como enganos ou coincidências providenciaisem casos excepcionais. Qualquer pretensão a revelações fora da Bíblia é firmemente rejeitada como contrária ao princípio da suficiência das Escrituras. Ordem e decoro litúrgico são valorizados acima de espontaneidade emocional. | Muito receptiva e expectante. Encoraja-se ativamente a busca e prática dos dons (em obediência a 1Cor 14:1: “procurai com zelo os dons espirituais”). Cultos carismáticos incluem orações por cura, línguas, profecias direcionadas, etc., dentro de diretrizes (por exemplo, necessidade de intérprete de línguas). O risco de desordem é reconhecido, mas confia-se na orientação dinâmica do Espírito e na intervenção pastoral para correção, se necessário. |
Autoridade e discernimento | A autoridade final é a Escritura, lida à luz do “analogia da fé” que Wesley identifica com o amor e a santidade. Qualquer suposta revelação ou dom deve concordar com a Bíblia e com o caráter de Deus. Wesley confiava na comunidade (bandos e classes metodistas) e na liderança pastoral para julgar manifestações. Ele mesmo se submetia aos critérios bíblicose rejeitava qualquer doutrina baseada apenas em revelação subjetiva. | Sola Scriptura: a Bíblia contém toda a revelação necessária; “as antigas formas de Deus revelar Sua vontade cessaram” (como afirma a Confissão de Westminster) após o período apostólico. Dessa forma, profecias atuais que pretendam guiar a Igreja não são reconhecidas. O discernimento concentra-se em garantir que o culto e a doutrina permaneçam fiéis à Escritura, evitando “novidades” carismáticas. | Afirma a Bíblia como padrão supremo, mas defende que o Espírito fala hoje de forma carismática, embora subordinada à Escritura. Há uma tensão entre liberdade do Espírito e estrutura: líderes carismáticos ensinam a julgar profecias e ensinos pela Bíblia, mas também incentivam os fiéis a ouvir “a voz do Espírito” em orientações pessoais. Igrejas pentecostais clássicas têm forte autoridade pastoral para regular práticas (por exemplo, decidindo quem pode falar em cultos), valorizando tanto a espontaneidade quanto a ordem carismática. |
(Tabela: Comparação sintética entre a visão de Wesley e outras tradições quanto aos dons do Espírito.)
Wesley e o Cessacionismo Reformado Clássico
A tradição reformada clássica, especialmente dentro do calvinismo, desenvolveu no período pós-Reforma a doutrina do cessacionismo – a crença de que certos dons miraculosos do Espírito (tais como línguas, profecias e curas sobrenaturais) cessaram com o fim da era dos apóstolos e a conclusão do cânon bíblico. Essa posição se consolidou em parte como reação às alegações de milagres na Igreja Católica medieval e contemporânea, que os reformadores viam como enganosos. João Calvino, por exemplo, argumentou que os milagres serviram para dar lustre ao Evangelho enquanto este era novo e obscuro no mundo, assegurando sua confirmação divina; mas “é mais provável que foram prometidos apenas por um tempo”, tendo cessado quando não mais necessários para provar a doutrina. Calvino chegou a admitir que talvez o mundo tenha perdido os milagres por ingratidão, mas sustentou que o verdadeiro propósito das maravilhas era prover evidências suficientes na fundação do cristianismo. Ele conclui que “certamente vemos que o uso [dos milagres] cessou não muito depois [dos apóstolos], ou pelo menos tornou-se tão raro que nos autoriza a concluir que não seriam igualmente comuns em todas as épocas”. Assim, para Calvino e muitos teólogos reformados posteriores (como em parte os puritanos e, mais sistematicamente, B. B. Warfield no século XIX), os dons extraordinários pertenceram à infância da Igreja. Após a completa revelação nas Escrituras, a Igreja deveria se guiar pela Palavra escrita, sem esperar contínuas manifestações espetaculares. Alegações de milagres posteriores foram frequentemente explicadas como fraudes humanas ou “imposturas de Satanás” para desviar os crédulos. Milagres reclamados por católicos medievais, por exemplo, Calvino tendia a descartar como “fábulas supersticiosas” ou enganos motivados por ambição. A Confissão de Westminster (1646) ecoa esse sentimento ao dizer que, tendo Deus revelado Sua vontade totalmente nas Escrituras, “aqueles antigos modos de revelar-Se ao Seu povo cessaram”. Em suma, o cessacionismo reformado via a era apostólica como única em termos carismáticos: os dons serviram para estabelecer a Igreja e autenticar a mensagem apostólica; cumprida essa função, eles encerraram-se providencialmente.
John Wesley diverge significativamente dessa visão reformada. Primeiramente, Wesley argumenta, como vimos, que não há base bíblica sólida para supor que Deus determinou um fim absoluto aos dons. Ele consideraria o cessacionismo estrito biblicamente infundado e historicamente incorreto. Citando a história, Wesley lembrava que nos séculos imediatamente posteriores aos apóstolos ainda houve relatos de dons espirituais na Igreja. De fato, ele se opôs frontalmente a Middleton (que ecoava a postura cessacionista) mostrando evidências de milagres no período dos Pais da Igreja e chamando de absurdo descartá-los a priori. Wesley concordaria que tais fenômenos tornaram-se raros, mas – ao contrário dos reformados – atribuiu isso não a um decreto divino de “fim dos dons”, e sim à falta de fé e amor da comunidade cristã (a “frieza do amor” e “falta de fé sobre a terra” de que ele fala). Negar a possibilidade de milagres presentes, para Wesley, era quase um insulto ao poder e liberdade de Deus, além de um sintoma de incredulidade. Ele escreve que é um grande erro pensar que já não há necessidade dos dons; pelo contrário, a incredulidade é que impediu que continuassem.
Por outro lado, Wesley partilhava com a tradição reformada algumas preocupações. Ele também afirmava a suficiência das Escrituras como regra de fé – ou seja, não admitiria “novas revelações” doutrinárias que competissem com a Bíblia. Assim, ele rejeitava veementemente qualquer pretensão dos entusiastas de sua época de que tinham recebido verdades inéditas do Espírito. Em uma Farther Appeal to Men of Reason and Religion, Wesley concorda que o sinal seguro de ser guiado pelo Espírito não é reivindicar visões ou profecias, mas sim “uma completa mudança de mente e coração, levando a uma vida nova e santa” – resposta idêntica, nota ele, à dada por um crítico (demonstrando sua concordância com critérios sóbrios de autenticidade espiritual). Nesse aspecto, Wesley e os reformados se unem: a evidência primária da obra de Deus é a santidade resultante, não a manifestação carismática em si.
Entretanto, em termos de atitude geral, Wesley manteve-se muito mais aberto que os reformados clássicos à possibilidade e à presença dos dons. Ele não ridicularizava relatos de cura ou línguas, desde que bem atestados e frutos de oração humilde. Ao contrário, achava que ridicularizar os dons – como muitos “homens formais e ortodoxos” fizeram – foi um dos fatores que extinguíram os dons no passado. Aqui há uma crítica implícita de Wesley aos próprios protestantes cessacionistas: sua atitude cética e sarcástica talvez continue “apagando o Espírito” (1Ts 5:19-20) na Igreja. Wesley preferia a postura de esperança expectante: encorajava os metodistas a estarem abertos a “tudo que Deus queira dar para o bem comum”, mesmo que não buscassem milagres pelo espetáculo. É emblemático que líderes metodistas americanos como Francis Asbury sonhavam que o metodismo permanecesse um movimento flexível e cheio do Espírito; Asbury via com bons olhos o fervor espontâneo – algo que, conforme historiadores, acabou florescendo no pentecostalismo posterior.
Resumindo, Wesley discorda do cessacionismo reformado ao afirmar a continuidade potencial dos dons e milagres até a atualidade, baseando-se na Escritura e nos primeiros séculos da Igreja. Ele concorda, porém, que os dons sem o Evangelho central nada são, e que qualquer prática espiritual deve ser julgada pela fidelidade bíblica. Wesley destaca o papel do Espírito na santificação e testemunho interior – ênfase menos presente no discurso reformado – e considera a ausência de dons mais como culpa humana do que como plano divino. Dessa maneira, Wesley posiciona-se historicamente como um mediador: defendeu a realidade das manifestações do Espírito contra o ceticismo calvinista e deísta, ao mesmo tempo em que contestou os abusos fanáticos de certos carismas, inclusive dentro do nascente metodismo, quando ocorriam desordens ou doutrinas estranhas. Essa mediação permitiu que o metodismo mantivesse tanto ortodoxia doutrinária quanto vitalidade espiritual.
Wesley e a Teologia Pentecostal/Carismática Moderna
Não é raro ouvir que “John Wesley preparou o caminho para o pentecostalismo”. De fato, há um reconhecimento histórico de que o movimento pentecostal do século XX teve raízes no Movimento de Santidade do século XIX, o qual por sua vez descende do metodismo wesleyano. Vários dos primeiros líderes pentecostais vieram de igrejas metodistas ou santidade. Termos como “pentecostal” e a expressão “batismo no Espírito Santo” foram inicialmente empregados pelos próprios metodistas do século XIX, ainda que com significado distinto do que depois assumiram no pentecostalismo clássico. Por exemplo, o teólogo metodista John Fletcher de Madeley (um sucessor teológico de Wesley) descreveu a experiência da santificação plena como um “batismo no Espírito Santo em fogo purificador” – entendendo-o como segunda bênção de pureza. Os pentecostais do início do século XX herdaram essa noção de uma segunda experiência pós-conversão, porém a reinterpretaram como um batismo para recebimento de poder e dons (especialmente o dom de línguas como sinal inicial). Assim, há uma conexão inegável: “não se pode falar de Pentecostalismo e Renovação Carismática à parte de suas raízes no metodismo”. Os metodistas “pentecostais” originais esperavam que Deus concedesse tudo o que estivesse prometido para edificação da Igreja, e as manifestações do Espírito realmente abundaram em vários avivamentos metodistas (especialmente nas camp meetings da América fronteiriça no século XIX). Tais manifestações incluíam curas milagrosas, sonhos e visões, tremores e êxtases – praticamente um prelúdio do que seriam os cultos pentecostais.
No entanto, ao comparar a teologia formulada de Wesley com a teologia pentecostal clássica, encontramos diferenças importantes de ênfase e compreensão:
• Diferente ênfase no “Batismo no Espírito Santo”: Wesley (e Fletcher) viam o “batismo no Espírito” como sinônimo da plena santificação – um derramamento de amor santo no coração do crente, purificando-o do pecado interior. Já a teologia pentecostal define o batismo no Espírito como um revestimento de poder para o serviço, usualmente acompanhado de evidências como falar em línguas. Para Wesley, o sinal da plenitude do Espírito era o amor perfeito e a vida irrepreensível, não uma manifestação específica como línguas. Ele até alertou que alguém poderia falar línguas ou profetizar e ainda carecer de amor verdadeiro – logo, faltaria o essencial. Os pentecostais concordam que o fruto do Espírito (amor) é vital, mas historicamente enfatizaram a glossolalia como evidência inicial do batismo no Espírito, algo que Wesley não ensinaria.
• Normatividade dos dons na igreja: Para o movimento pentecostal e carismático, exercitar os dons espirituais nas congregações é parte integral do culto e da vida comunitária. Busca-se ativamente a prática de 1Coríntios 12–14: cânticos espirituais, línguas e interpretação, profecias, orações de cura, etc. Wesley, por outro lado, não incorporou de forma explícita essas práticas nos cultos metodistas de sua época. Seus cultos seguiam em grande parte a liturgia anglicana, e as reuniões de classe focavam mais em testemunhos pessoais, confissão de pecados e aconselhamento espiritual do que em manifestações como línguas. Línguas estranhas, especificamente, não eram algo buscado ou promovido pelos primeiros metodistas – tanto que não há registro significativo de glossolalia no metodismo do século XVIII. Wesley até menciona que em seu tempo as línguas não eram comumente vistas, mas isso ele atribuía à falta de espera ou reticência da igreja, não que fosse impossível ocorrer. Em contraste, no pentecostalismo, falar em línguas (como em Atos 2) tornou-se quase um distintivo identificador.
• Busca dos dons vs. ênfase na santidade: Wesley priorizava a busca da santidade (santificação) sobre a busca de dons. Ele interpretaria “procurai com zelo os melhores dons” (1Co 12:31) como válido, mas subordinado ao “mostrarei um caminho mais excelente” (o amor em 1Co 13). Carismáticos modernos frequentemente encorajam os fiéis a buscarem ativamente dons específicos (por ex., participar de conferências de cura, “escola de profetas”, etc.). Wesley provavelmente veria isso com cautela, temendo desviar o foco do essencial. Para ele, a plenitude do Espírito refletir-se-ia primariamente em vidas santas e em serviço humilde, não necessariamente em quantos milagres ocorrem. Isso não quer dizer que pentecostais desprezem a santidade – de fato, a tradição pentecostal clássica também advém da ênfase holiness e sustenta padrões morais elevados. Mas a teologia prática difere: Wesley estruturou metodicamente comunidades para crescerem em graça (classes, bandas, disciplina eclesiástica), enquanto igrejas carismáticas estruturam muito de sua vida ao redor de cultos de avivamento e momentos de ministração de dons.
• Hermêutica e doutrina do Espírito: Wesley, como vimos, advogava uma “hermenêutica da santidade”. Os pentecostais desenvolvem o que alguns chamam de “leitura anabatista-lucana” – dando atenção especial ao livro de Atos como modelo para a igreja atual. Assim, histórias como o Pentecostes, a casa de Cornélio (At 10) e Éfeso (At 19) moldam a expectativa de experiências atuais. Wesley certamente pregou sobre Atos e cria na atualidade de tais eventos, mas ele interpretava os padrões bíblicos principalmente em função do que promove santidade. Por exemplo, ele lia o Pentecostes não tanto como repetível em línguas de fogo visíveis, mas como indicando a necessidade de cada crente ter seu “coração estranhamente aquecido” pelo Espírito (um Pentecostes interior). Já um pregador pentecostal enfatizaria os carismas exteriores como repetíveis. Dessa forma, a seleção e peso dos textos bíblicos diferem: Wesley se apoia fortemente em Romanos 8 (vida no Espírito, testemunho de adoção) e 1João (amor aperfeiçoado lança fora o medo) – textos de cunho ético e interior; os carismáticos destacam Joel 2/Atos 2 (derramamento do Espírito com profecia), 1Cor 12 (lista dos dons) e Marcos 16:17-18 (sinais que acompanharão os que crêem). Ambos aceitam todos esses textos, mas dão ênfases distintas no ensino e prática.
Em termos de resultado prático, Wesley poderia ser chamado de “carismático não-declarado”. Ele experimentou frequentemente obras extraordinárias do Espírito – há registros de cura física mediante oração, pessoas relatando visões ou profecias sob sua pregação, livramentos milagrosos em suas viagens, etc.. Wesley não negou esses fatos; pelo contrário, os documentou e agradeceu a Deus por eles. Nesse sentido, um historiador afirma que Wesley, “apesar de não reivindicar nem ensinar a normatividade dos dons extraordinários, frequentemente presenciou curas, libertações, profecias e até um questionável caso de ressuscitação de um morto”. A diferença é que Wesley não edificou sua teologia em torno dessas manifestações, enquanto o pentecostalismo as elevou a elemento central de sua identidade. Inclusive, Wesley veria perigo em qualquer movimento que definisse a si mesmo primeiramente pelos dons em vez da santidade. Ele argumentaria que “o Espírito Santo foi dado com um propósito mais excelente: produzir os frutos ordinários (santidade) essenciais a todos os cristãos”, e que isso deve ter precedência sobre os aspectos extraordinários.
Contudo, há grande afinidade espiritual entre Wesley e o pentecostalismo no reconhecimento de que o cristianismo é vivência do poder do Espírito. Ambos rejeitam uma religião meramente formal e intelectual. Historicamente, pode-se dizer que o DNA teológico de Wesley está presente no pentecostalismo – a sede por uma experiência real de Deus, a noção de uma segunda obra da graça (ainda que com entendimento diferente), o uso de linguagem de Pentecostes, e mesmo a ênfase na santidade moral que muitas igrejas pentecostais mantiveram em seu início. De fato, alguns metodistas carismáticos contemporâneos se autodenominam “metodicostais” (methocostal), afirmando essa herança. Pesquisadores notam que “não se trata apenas de uma conexão histórica; há também uma conexão ontológica entre Wesley e o cristianismo carismático”, pois ambos compartilham a crença na atuação presente dos dons do Espírito na vida e ministério cristão.
Em conclusão desta comparação, Wesley pode ser visto nem como cessacionista, nem exatamente como “carismático” nos termos modernos, mas como um precursor equilibrado. Um autor o chamou de “quase carismático”: Wesley não ensinou que os dons milagrosos fossem normativos para todos os crentes, mas também não os excluiu; ele praticou uma abertura carismática (pela oração e fé) sem construir uma doutrina carismática sistemática. Essa postura pode servir de ponte entre evangélicos tradicionais e carismáticos, uma vez que afirma o sobrenatural sem perder de vista o telos central da vida cristã – a conformidade com Cristo em amor e santidade.
Perspectivas Católica e Ortodoxa sobre os Dons (e relevância para Wesley)
As tradições católica romana e ortodoxa oriental oferecem ainda outro ângulo de comparação, especialmente porque compartilham com Wesley certas ênfases (como a busca da santidade) e, ao mesmo tempo, diferem tanto do cessacionismo protestante quanto do pentecostalismo no modo de enquadrar as manifestações carismáticas.
Igreja Católica: Historicamente, a Igreja Católica nunca adotou uma doutrina de cessacionismo explícita. Ao contrário, a teologia católica manteve a noção de charismata (dons gratuitos) dados pelo Espírito Santo em todas as eras para o benefício da Igreja. Por exemplo, São Tomás de Aquino no século XIII distinguiu entre gratia gratum faciens (graça que torna alguém agradável a Deus – essencialmente santificante) e gratia gratis data (graça dada gratuitamente para serviço, como dons de milagres, línguas, profecia). Esses últimos, segundo Tomás, podem ser concedidos a qualquer pessoa conforme a necessidade da Igreja, independentemente da condição moral perfeita do indivíduo, e não para proveito próprio mas para o bem comum. Assim, a teologia católica clássica deixou espaço para reconhecer milagres ao longo da história (especialmente associados a santos). De fato, processos de canonização exigem comprovação de milagres post-mortem atribuídos à intercessão do santo, atestando a crença de que Deus continua a operar sinais.
Contudo, após os abusos de movimentos como o montanismo no século II (considerado herético), a Igreja Católica adotou uma postura prudente e institucional no trato dos carismas. As supostas revelações privadas ou profecias deveriam submeter-se ao discernimento e aprovação das autoridades eclesiásticas. Os charismata foram vistos como presentes, mas em âmbito mais restrito – por exemplo, em mosteiros, na vida de santos místicos, ou em contextos missionários – não tanto como parte do culto regular de cada paróquia. Até meados do século XX, um católico médio vivenciava o sobrenatural principalmente através dos sacramentos (eucaristia, etc.) e eventualmente de eventos milagrosos pontuais (aparições marianas, curas em Lourdes, etc.), mas não esperaria falar em línguas numa missa dominical.
Isso mudou um pouco com o Concílio Vaticano II (1962-65) e a emergência da Renovação Carismática Católica(RCC) a partir de 1967. O Vaticano II, em Lumen Gentium 12, declarou enfaticamente: “O Espírito Santo… distribui entre os fiéis de toda classe dons especiais[charismata], atribuindo-os a cada um conforme quer. Com esses dons Ele os torna aptos e prontos para assumir várias obras e encargos úteis para a renovação e maior expansão da Igreja… Esses carismas extraordinários, sejam os mais brilhantes sejam os mais simples e amplamente difundidos, devem ser recebidos com gratidão e consolação, pois são perfeitamente adequados e úteis às necessidades da Igreja”. Esta afirmação conciliar – que também cita 1Coríntios 12:7,11 – poderia ser subscrita por John Wesley sem hesitação. Ela ecoa a ideia de Wesley de que o Espírito reparte dons como quer a todos os estados de vida, e que esses dons (notáveis ou simples) devem ser acolhidos com gratidão e usados para edificar a Igreja.
Após o Vaticano II, o próprio papa Paulo VI e especialmente João Paulo II e o atual papa Francisco encorajaram a redescoberta dos carismas. Francisco ensinou que “os carismas são dons dados a alguns para serem úteis a todos… não para benefício próprio, mas para a beleza e missão da Igreja”. Essa linguagem é semelhante ao que Wesley escrevera dois séculos antes sobre os dons dados “para o bem comum” (1Co 12:7) e não para vanglória pessoal. Assim, podemos dizer que a visão católica pós-Vaticano II e a de Wesley convergem notavelmente: ambos afirmam a presença contínua dos carismas e a necessidade de discernimento e gratidão ao Espírito por eles.
Uma diferença estaria na estrutura de discernimento. Na Igreja Católica, o discernimento dos carismas tende a ser mais centralizado: os bispos e o Magistério avaliam fenômenos (por exemplo, mensagens proféticas como Fátima ou eventos como a Renovação Carismática em si receberam análises teológicas e diretrizes oficiais). Wesley, operando numa dinâmica de movimento, confiou o discernimento primeiramente à liderança pastoral e comunitária local, sempre sob o crivo escriturístico. Mas interessante notar: Wesley demandava que qualquer exercício carismático fosse “interpretado à luz de nossa própria tradição” e integrado na ordem da Igreja. Isso lembra a exortação católica de que carismáticos leigos não devem agir à revelia, mas em união com seu clero e tradição. De fato, diretrizes da Igreja Metodista Unida afirmam: “Carismáticos devem interpretar seus dons e experiências à luz de suas próprias tradições… quando isso não ocorre, surgem divisões”. Ou seja, tanto Wesley/Metodismo quanto a Igreja Católica enfatizam que os dons autênticos não causam cisão, antes se harmonizam com a doutrina e governo legítimo da Igreja (1Co 14:33,40).
Igrejas Ortodoxas: A tradição ortodoxa compartilha com a católica a crença em milagres contínuos e dons espirituais, especialmente manifestos na vida ascética e sacramental. Os ortodoxos valorizam profundamente a ação do Espírito na theosis (deificação do crente), entendendo que todo o processo de santificação e iluminação é obra carismática do Espírito. Eles reverenciam relatos de santos que possuíram dons extraordinários, como dom da visão espiritual (insight profético), dom de curas, incorrupção de relíquias, etc. Contudo, similar à católica, a Ortodoxia historicamente não promoveu algo como reuniões de avivamento ou encorajamento generalizado para leigos falarem em línguas. Há alguns episódios de fervor carismático na história ortodoxa – por exemplo, grupos como os “khlysts” na Rússia czarista praticavam êxtases e profecias (foram considerados heréticos), e no século XX pequenas correntes ortodoxas envolveram-se na Renovação Carismática. Mas, mainstream, a Ortodoxia confia sobretudo na mística sacramental e no silêncio contemplativo (hesicasmo) como espaços da ação do Espírito, mais do que em manifestações pentecostais públicas.
Mesmo assim, na hagiografia ortodoxa abundam carismas: São Serafim de Sarov (séc. XIX) conversava com o Espírito Santo como com um amigo e alguns afirmam que ele brilhou de luz (dons visionários); muitos Starets (elders espirituais) eram consultados por possuírem dons de discernimento dos corações; há relatos de monges que oraram em línguas angélicas no êxtase da oração de Jesus, etc. Mas essas coisas ocorrem em contextos de altíssima santidade pessoal, nunca fora da busca da virtude. Dessa forma, os ortodoxos amarram intimamente carisma e santidade – um santo faz milagres porque está unido a Deus, tendo purificado as paixões. Wesley certamente aprovaria essa conexão. Ele mesmo afirmava que os dons desapareceram quando a santidade diminuiu, implicando que uma efusão renovada dos dons exigiria um retorno da devoção fervorosa (“fé e virtude” como citou de Crisóstomo). Para Wesley, nenhum avivamento externo genuíno vem sem avivamento moral interno.
Assim, podemos dizer que Wesley está mais próximo das igrejas histórica-católica-ortodoxas do que de muitos contemporâneos protestantes de seu tempo no ponto de crer que milagres não pararam completamente. Ele inclusive sustentou a legitimidade de fenômenos católicos antigos que colegas protestantes ridicularizavam. Por outro lado, Wesley se alinharia com a ênfase oriental de que o alvo principal é a união com Deus em santidade, não os sinais. Sua “hermenêutica da santidade” casa-se com a visão oriental de que a presença do Espírito se manifesta primariamente na transformação do fiel em ikon (imagem viva) de Cristo. Os milagres exteriores são subprodutos que Deus concede em seu amor, mas não substituem a luta ascética e o crescimento ético.
Em síntese, Wesley compartilha com a tradição católico-ortodoxa a abertura à dimensão carismática contínua e o respeito por manifestações históricas do Espírito, ao mesmo tempo em que concorda na necessidade de discernimento comunitário e subordinação dos dons à caridade e à edificação eclesial. Ele diverge do cessacionismo reformado ao recusar limitar o Espírito a uma era passada, e diverge do pentecostalismo recente ao não fazer dos carismas um programa ou expectativa universal desvinculada da maturidade espiritual. Nisso tudo, Wesley representa uma via pneumatológica moderada e rica, que dialoga com diversos polos da tradição cristã.
Implicações e Aplicações Práticas para a Igreja Contemporânea
Estudar a pneumatologia de John Wesley e sua visão dos dons espirituais não é apenas um exercício histórico; oferece também princípios valiosos para a vida e liderança cristã hoje. Destacam-se pelo menos três áreas de implicação prática: (1) as práticas de discernimento congregacional relacionadas aos dons e manifestações do Espírito; (2) o treinamento teológico e pastoral sobre os dons espirituais nas igrejas; e (3) a aplicação da hermenêutica da santidade de Wesley na leitura bíblica e na vivência dos dons nos dias atuais. Em cada área, as ideias de Wesley podem ajudar a Igreja contemporânea a buscar um caminho equilibrado – aberto ao mover do Espírito, mas centrado em sua missão primordial de produzir discípulos santos e amorosos.
Discernimento Congregacional dos Dons e Manifestações
Wesley ensinou seus seguidores a não “apagar o Espírito” (cf. 1Ts 5:19) nem “desprezar as profecias”, mas ao mesmo tempo “provar todas as coisas e reter o bem” (1Ts 5:20-21). Esse equilíbrio continua essencial. Como uma congregação local pode discernir autenticamente os dons e manifestações do Espírito? Eis alguns pontos orientadores derivados da abordagem wesleyana:
• Priorizar os “frutos dignos de arrependimento”: Wesley avaliava fenômenos espirituais pelo critério de frutos. Assim, uma igreja hoje, ao lidar com alguém reivindicando um dom (por exemplo, de profecia), deve observar o caráter e os efeitos produzidos. A profecia leva a comunidade a maior fidelidade, unidade e arrependimento? Uma suposta cura resulta em ações de graças humildes a Deus? Se sim, há bons indícios de autenticidade. Se, pelo contrário, a manifestação gera confusão, vanglória pessoal ou divisão, deve-se ter cautela ou mesmo corrigir/caridosamente refrear. Wesley disse que todo dom extraordinário deve ser julgado por seu “fim último” – promover a santidade. Igrejas podem formar grupos de discernimento espiritual (tal como conselhos ou equipes pastorais) que orem e reflitam sobre ocorrências à luz desses frutos.
• Fundamentar-se nas Escrituras e na Doutrina: Wesley não permitia que nenhuma experiência reinterpretasse o evangelho. Do mesmo modo, comunidades hoje precisam firmar as bases bíblicas e doutrinárias do exercício dos dons. Por exemplo, 1Coríntios 12–14 deve ser bem ensinado: Paulo dá instruções claras de ordem (um fala de cada vez, haja interpretação de línguas, sujeitos os espíritos dos profetas etc.). Uma comunidade instruída nesses princípios terá parâmetros para julgar se algo está fora do escopo bíblico. Além disso, um entendimento teológico robusto (como o de Wesley) – que vincula os dons ao amor e ao serviço – pode ser ensinado aos membros, moldando a cultura congregacional para procurar os dons “com um propósito de edificação, não de espetáculo”. Em termos práticos, igrejas podem criar momentos de ensino e reflexão sobre experiências espirituais, integrando-as com a teologia clássica (assim evita-se o fenômeno sem fundamento).
• Cultivar uma atmosfera de oração e expectativa reverente: Wesley advogava pedir a Deus tudo que Ele quisesse dar. Ele mesmo orava por enfermos e orientação divina esperando que Deus pudesse responder com poder. Portanto, igrejas devem orar com fé tanto pelas curas físicas quanto por sabedoria e dons de liderança, deixando o resultado a Deus. Ao mesmo tempo, a expectativa deve ser reverente e submissa – como Wesley dizia, buscar os dons não de forma apressada ou presunçosa, mas subordinada à vontade de Deus. Na prática, isso significa que o culto e as reuniões de oração deem espaço para orações espontâneas por situações de milagre, momentos de silêncio ouvindo o Espírito, sem, porém, cair em pressões emocionais ou manipulação para “forçar” um milagre. Uma dica é seguir Wesley ao sempre vincular oração por dons a clamor por santidade: por exemplo, antes de pedir um sinal externo, a congregação pede a Deus que purifique os corações – assim mantém-se a prioridade correta.
• Estruturas de prestação de contas e orientação: Wesley implantou no metodismo primitivo um sistema de classes e bandas onde as pessoas compartilhavam livremente suas experiências espirituais e recebiam correção fraterna quando necessário. Hoje, igrejas locais podem se beneficiar de estruturar espaços seguros para membros partilharem possíveis mensagens proféticas, sonhos ou outros impulsos espirituais. Esses podem ser primeiramente testados em um grupo menor diante de líderes maduros, antes de serem trazidos publicamente. Isso evita que o culto dominical seja pego de surpresa por algo estranho sem avaliação. Também permite mentorear aqueles que manifestam dons – ensinando-os humildade e precisão. Tal prática reflete o conselho do próprio Wesley de que os metodistas carismáticos interpretem suas experiências à luz de sua tradição, para prevenir divisões e abusos.
• Não sufocar, nem supervalorizar as manifestações: Inspirados em Wesley, líderes devem transmitir à congregação uma dupla mensagem: (1) Deus pode sim agir de modo surpreendente e nós damos liberdade ao Espírito – portanto, não vamos zombar ou rejeitar algo apenas porque é incomum; (2) Nosso foco, entretanto, permanece em Cristo e na santidade – não faremos dos sinais a medida primária da presença de Deus. Essa mentalidade evita os dois extremos. Por exemplo, se alguém tem uma palavra profética, a liderança a ouve atentamente (não despreza), mas depois pergunta: “Isto está de acordo com as Escrituras? Edifica? Testifica com o que Deus já tem falado?”. Agindo assim, a comunidade aprende que é amada e guiada pelo Espírito, mas também aprende maturidade para não ser “levada por todo vento” de espiritualidade.
Formação Teológica e Pastoral sobre os Dons Espirituais
Nas últimas décadas, muitas denominações metodistas e tradicionais enfrentaram o desafio de lidar com membros e líderes influenciados pelo movimento carismático mundial. Como formar teológica e pastoralmente ministros e leigospara uma abordagem saudável dos dons? A herança de Wesley oferece vários insights:
• Incluir a Pneumatologia de Wesley no currículo teológico: Seminários e cursos teológicos das igrejas de tradição wesleyana devem resgatar o ensino de Wesley sobre o Espírito. Infelizmente, durante parte do século XX, alguns metodistas tornaram-se cessacionistas na prática, negligenciando Wesley. É crucial ensinar novos pastores o que Wesley escreveu em sermões como “O Caminho Mais Excelente” e suas cartas (por exemplo, a Wesley vs. Middleton). Isso daria aos ministros um fundamento histórico-teológico para abordar questões carismáticas de forma informada. Além disso, o exemplo de Wesley debatendo teólogos cessacionistas e, simultaneamente, corrigindo fanáticos, pode inspirar uma postura semelhante hoje: dialogar tanto com igrejas cessacionistas (por exemplo, batistas ou presbiterianas conservadoras) quanto com as intensamente carismáticas, oferecendo uma perspectiva equilibrada.
• Recuperar o conceito de “teologia prática do Espírito Santo”: Wesley, nota-se, desenvolveu uma “teologia prática” do Espírito: não apenas teoria, mas métodos (daí “metodista”) para viver no Espírito. Pastores em treinamento podem aprender, por exemplo, a conduzir reuniões de oração no estilo de Wesley – que combinavam cânticos, orações espontâneas e compartilhamento de testemunhos, mantendo ordem e propósito edificante. Ensinar sobre os pequenos grupos wesleyanos (classes e bandas) também é formar líderes para discipular experiências carismáticasem contextos íntimos. Isso previne dois problemas: a falta total de abertura (que sufoca o Espírito) e o sensacionalismo público (que Wesley evitava).
• Doutrina da inteira santificação: Wesley integrou dons e santidade sob a obra do mesmo Espírito. Assim, currículos pastorais devem enfatizar que busca dos dons sem santidade é vã, e, vice-versa, santidade autêntica frequentemente transborda em serviço dotado pelo Espírito. Um pastor bem formado deve ser capaz de pregar tanto sobre Galátas 5 (frutos do Espírito) quanto sobre 1Coríntios 12 (dons) mostrando que não há contradição: o mesmo Espírito concede ambos. Por exemplo, alunos de teologia poderiam estudar casos históricos – como avivamentos metodistas e pentecostais – analisando seus acertos e desvios à luz desse balanço.
• Orientação pastoral específica: Pastores em campo frequentemente se deparam com situações concretas: alguém diz ter uma visão; um grupo quer começar um culto de oração por curas; membros jovens visitam uma igreja neopentecostal e voltam questionando por que sua igreja não fala em línguas. Wesley enfrentou paralelos em seu tempo. É útil treinar líderes para responderem sem medo nem desprezo. Se um fiel relata uma cura, o pastor pode agradecer a Deus publicamente e checar a veracidade discretamente (Wesley pedia atestados médicos quando possível). Se alguém deseja dons, o pastor pode orientá-lo a orar e buscar intimidade com Deus antes de tudo. Acompanhamento e ensino contínuo são chaves. Wesley era incansável escrevendo cartas e panfletos para guiar seu rebanho nesses assuntos – os líderes de hoje podem usar sermões, estudos e até mídias sociais para educar sobre dons espirituais de modo bíblico e wesleyano.
• Aprender com a Renovação Carismática, mas manter identidade Wesleyana: A Igreja Metodista e afins têm beneficiado-se de uma “injeção” de vigor carismático em alguns contextos, mas há também casos de tensões e divisões. Um conselho prático extraído de um documento metodista: “Quando carismáticos metodistas adotam integralmente a linha pentecostal clássica, deixam de ser metodistas – pelo menos no sentido wesleyano”. Ou seja, faz-se necessário situar o movimento carismático dentro da teologia wesleyana. Treinamentos podem enfatizar pontos em que divergimos de algumas teologias carismáticas populares – por exemplo, prosperidade material não era sinal espiritual para Wesley; ou o Espírito não elimina a necessidade de Medicina (Wesley, apesar de crer em cura milagrosa, usava e ensinava remédios). Pastores informados poderão assim abraçar o que é bom (fervor missionário, expectativa de milagres) e corrigir o que não condiz com nossa tradição (autoritarismo de certos “ungidos”, antiintelectualismo, etc.). Uma frase do guia da UMC resume: “Reconheçam que, entendidos adequadamente no contexto de nossa própria tradição, os dons carismáticos podem ser considerados como um vento fresco do Espírito”. Ou seja, integrados ao arcabouço wesleyano, os carismas renovam a igreja; fora dele, podem causar rompimentos.
Aplicando a “Hermenêutica da Santidade” de Wesley Hoje
Por fim, uma contribuição única de Wesley é sua hermenêutica da santidade – a ideia de que interpretamos a Escritura e as experiências espirituais a partir do objetivo central de promover santidade de coração e vida. Aplicar essa lente hoje pode trazer equilíbrio nas práticas carismáticas e no ensino bíblico a elas relacionado:
• Interpretação bíblica centrada em amor e santidade: Wesley famosamente dizia que a “analogia da fé” (a linha mestra para entender a Bíblia) é que Deus quer nos salvar do pecado e nos encher de amor. Se os cristãos modernos lessem passagens sobre dons espirituais com essa chave, evitariam erros. Por exemplo, 1Coríntios 12–14 deve ser lido não como licença para perseguição de poder espiritual, mas em continuidade com 1Coríntios 13 – ou seja, os dons listados em 1Cor 12 só cumprem seu propósito se usados no amor descrito em 1Cor 13. Wesley enfatizou exatamente isso: amor é “mais excelente” que todos os dons, portanto qualquer interpretação que coloque os dons no centro, deslocando o amor, está errada. Hoje, pregadores e professores podem emular Wesley ao pregar sobre, digamos, Joel 2:28-29 (“derramarei meu Espírito…”): eles destacariam que esse derramamento visa levar todos(filhos e filhas, servos e servas) a conhecerem ao Senhor (Joel 2:27) e viverem em sua presença – não apenas produzir fenômenos.
• Ler a história da Igreja com lentes de santidade: Wesley lia os primeiros séculos e via os dons enquanto a Igreja se manteve fervorosa; via o declínio moral e notava a cessação. Isso sugere que quando a Igreja se renova em santidade, dons podem reaparecer. De fato, há quem observe que os dons do Espírito frequentemente voltaram à tona em períodos de avivamento e reforma moral (ex.: nos morávios, metodistas primitivos, pentecostais iniciais com seu forte compromisso de santidade). Assim, Wesley nos convidaria a buscar primeiramente reavivar o amor e a pureza na Igreja; então, os carismas seguirão como “sinais que acompanharão os que crêem” – não como fim em si, mas como bênçãos adicionais. Igrejas atuais que almejam ver mais do sobrenatural talvez devessem focar em discipulado mais profundo, abandono de pecados, oração e jejum – e confiar que Deus “confirmará a Palavra com sinais” no tempo oportuno (Mc 16:20). Essa hermenêutica da santidade coloca a causa antes do efeito, evitando frustrações de buscar dons divorciados da vida consagrada.
• Ética e dons caminham juntos: Wesley diria que a verdadeira presença do Espírito resulta tanto em poder quanto em ética. Aplicando isso: comunidades carismáticas deveriam ser as mais comprometidas com justiça, verdade e amor ao próximo, ou então suas línguas angelicais soam ocas (1Co 13:1). Pastores podem continuamente lembrar que não há contradição entre servir os pobres e buscar curas milagrosas – ambos são obra do mesmo Espírito de amor. A hermenêutica da santidade aplicada leva congregações a checar: nossas práticas de dons têm nos feito melhores cristãos? Mais mansos, puros, misericordiosos? Se não, algo está fora de lugar. Wesley afirmaria que qualquer movimento do Espírito que não leve ao Sermão do Monte em ação não é plenamente do Espírito.
• Espiritualidade integral: Por fim, aplicar a visão de Wesley significa buscar uma espiritualidade integral. Ele uniu a “espiritualidade entusiasta” (experiência viva do Espírito) com a “espiritualidade prática” (vida de santidade cotidiana). Para hoje, isso inspira crentes a não segmentarem sua fé. Um exemplo: alguém que desfruta de dons no culto (profetiza ou canta em línguas) deve ser encorajado a buscar a presença do Espírito também na paciência no trânsito, no perdão a quem ofende, na honestidade no trabalho. Wesley enfatizaria que a marca do batismo do Espírito é vista no comportamento transformado na segunda-feira tanto quanto nos êxtases de domingo. Pregações e ensinamentos devem conectar essas esferas, formando cristãos carismáticos que também sejam modelos de piedade prática – tal qual Wesley e seus metodistas eram conhecidos tanto por seus hinários de fogo quanto por visitarem prisões e socorrerem os pobres.
Conclusão
A jornada que empreendemos pelo pensamento de John Wesley revelou uma pneumatologia rica e equilibrada, na qual fervor espiritual e rigor teológico andam de mãos dadas. Wesley concebeu o Espírito Santo como a alma da vida cristã, Aquele que desperta os mortos em pecado, testemunha ao coração do crente sua salvação, o impele à santidade e, sim, por vezes opera milagres e sinais para a glória de Cristo. Longe de ser cessacionista, Wesley argumentou biblica e historicamente a favor da continuidade dos dons espirituais na Igreja, atribuindo seu arrefecimento à perda do amor e da fé genuína entre os cristãos. Ao mesmo tempo, longe de ser um entusiasta irresponsável, ele situou os carismas em perspectiva: eles são dádivas subordinadas ao propósito maior de Deus de nos fazer santos e amorosos. Em sua própria vida e ministério, Wesley mostrou que é possível ser cheio do Espírito sem alardes; testemunhar curas e maravilhas sem perder a sobriedade; abraçar a “extraordinária” intervenção divina sem descuidar das “ordinárias” obras de graça no coração.
Comparado a outras tradições, Wesley aparece como um ponto de convergência: concorda com os reformados que nenhuma revelação ou poder pode contrapor-se às Escrituras e que o Evangelho não necessita de constante espetacularidade para avançar – basta a pregação fiel e a obra interna do Espírito; mas concorda também com pentecostais e católicos que é Deus quem determina os limites e tempos de Seus dons, e não devemos pôr Ele numa caixa teológica de inatividade. Wesley seria crítico tanto da incredulidade organizada quanto da credulidade indisciplinada. Seu legado aponta para uma Igreja que ora com fé por avivamento e dons, mas que sabe que o maior milagre é um pecador transformado em santo.
Para a igreja contemporânea, especialmente as de matriz wesleyana, as lições são claras. Retomar a teologia de Wesley sobre o Espírito pode oferecer uma terceira via entre o racionalismo frio e o emocionalismo vazio. Significa fomentar comunidades vibrantes no Espírito, porém sempre avaliando as experiências pelo crivo da Escritura, da razão iluminada e da tradição dos santos. Significa formar discípulos que busquem não apenas os dons do Espírito, mas sobretudo o Espírito dos dons – isto é, o caráter de Cristo que o Espírito Santo deseja imprimir em nós. Conforme Wesley insistia, a marca de um mover autêntico do Espírito não é a quantidade de êxtase, mas a colheita de frutos de justiça, paz e gozo em Deus.
Em última análise, John Wesley nos desafia a manter o foco no “mais excelente caminho” (1Co 12:31b). Se hoje a Igreja buscar com zelo esse caminho do amor santificador – tal como Wesley o entendeu e viveu – não precisa temer abrir-se aos dons carismáticos. Pois, então, qualquer manifestação do Espírito encontrará solo fértil e guardado pela humildade e caridade. A pneumatologia wesleyana nos lembra que o Espírito Santo é tanto fogo do avivamento quanto o sopro suave que santifica; tanto dom de línguas quanto palavra de fé operando pelo amor. Unir esses aspectos é o desafio e o privilégio diante de nós. E para isso, nas palavras do próprio Wesley, “que Deus nos dê corações dispostos a receber tudo que Ele julgue bom conceder, para utilidade comum, sem jamais esquecer que a única coisa essencial é termos em nós a mente que havia em Cristo – em suma, sermos santos como Ele é santo”.
Bibliografia:
- Sermões de John Wesley, especialmente “The More Excellent Way” (Sermão 89) e “Scriptural Christianity”.
- The Works of John Wesley (Diários e Cartas), incluindo a Carta a Dr. Middleton (1749) e entradas de diário de 15/8/1750.
- Zivadinovic, Dojcin. “Wesley and Charisma: An Analysis of John Wesley’s View of Spiritual Gifts.” Andrews University Seminary Student Journal 1.2 (2015): 53-71.
- Firebrand Magazine. “Wesley, the Almost Charismatic” (Artigo online).
- Guidelines: The UMC and the Charismatic Movement (Documento da Igreja Metodista Unida, 2012).
- Calvino, João. Comentário de Marcos 16 e outras obras (sobre cessação dos dons).
- Concílio Vaticano II. Lumen Gentium, §4 e 12 (Dogm. Const. sobre a Igreja).
- Oden, Thomas C. John Wesley’s Scriptural Christianity (Zondervan, 1994).
- Rack, Henry. Reasonable Enthusiast: John Wesley and the Rise of Methodism (1989).
- Collins, Kenneth J. The Theology of John Wesley: Holy Love and the Shape of Grace (2007).
(As citações em inglês fornecidas no texto foram livremente traduzidas para o português pelo autor desta resposta, mantendo-se referências para conferência.)
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