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“Crise de Fé e Sensação de Abandono: Uma Exposição do Salmo 22”

Sermão do Bispo Ildo à Igreja Metodista Livre de Mirandópolis em 2 de Fevereiro de 2025


Introdução: A dúvida inesperada

Eu era candidato ao ministério e estava no início da plantação da primeira igreja. Era um culto de sábado, e eu me preparava para pregar. Tudo corria normalmente até que, poucos minutos antes de subir ao púlpito, fui acometido por uma dúvida terrível que jamais experimentara antes. A pergunta que ressoava em meu coração era:


“Será que tudo isso é verdade mesmo? Será que Deus existe? Será que Jesus é o Salvador?”

Embora eu fosse crente desde a infância e estivesse no seminário, senti-me momentaneamente em pânico. Pensava comigo mesmo:


“Como posso pregar se não tenho certeza? Como posso proclamar a Palavra se meu coração está tomado por essa descrença repentina?”

Porém, algo curioso aconteceu: no meio desse turbilhão, comecei a me preocupar com o que Deus pensaria de mim naquele instante. Foi aí que me dei conta de que, de certa forma, eu ainda cria Nele. Se estava preocupado com a opinião do Senhor, é porque, lá no fundo, sabia que Ele continuava sendo Deus. Isso me levou a clamar por perdão, repetindo a súplica que tantos antes de mim fizeram:


“Senhor, perdoa-me por minha incredulidade e aumenta a minha fé!”

Essa experiência me mostrou que até cristãos firmes podem passar por crises de fé. As circunstâncias podem nos abalar de tal maneira que nossa confiança em Deus fique estremecida.


João Batista e a dúvida em meio à adversidade

Um exemplo bíblico marcante é o de João Batista. Ele, que preparou o caminho para o Messias e batizou o próprio Jesus, teve seu momento de fraqueza quando estava na prisão, prestes a ser morto por Herodes. Sentindo-se abandonado, sem ver Jesus aparecer para libertá-lo, João questionou:


“És tu aquele que haveria de vir ou devemos esperar outro?” (Lucas 7:19-20)

Afinal, o que acontecera com o Messias poderoso que ele proclamara? Por que o silêncio de Cristo naquele momento tão crítico? Possivelmente, João ainda nutria uma expectativa de que o Messias estabeleceria um reino físico, mais imediato, que o libertaria das mãos de Herodes. A realidade, porém, mostrou o contrário: Jesus não apareceu para tirá-lo da prisão. Em meio a essa frustração, João experimentou a crise de fé.


Isso nos ensina que, por mais fervorosa que tenha sido nossa fé em outros momentos, as dificuldades podem nos levar a questionamentos profundos.


A frase intrigante de Jesus na cruz

Outro episódio ainda mais impactante é o de Jesus na cruz, quando Ele exclamou:


“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46)

Apenas essa declaração já desperta inúmeros questionamentos. Como pode o próprio Filho de Deus sentir-se desamparado? Como o Pai permitiria que o Filho clamasse assim? Essa sensação de abandono, mesmo em meio a uma fé inabalável, é o que analisamos no Salmo 22, que Jesus estava citando.


Salmo 22: O clamor messiânico

O Salmo 22 é conhecido como um “Salmo Messiânico”. Muitos judeus, inclusive, reconhecem seu caráter profético, pois ele descreve em detalhes surpreendentes o sofrimento de alguém que é desprezado, injuriado e tem as mãos e os pés transpassados. Vejamos alguns pontos-chave:


O clamor de abandono (v.1):

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

Jesus repete exatamente essas palavras quando está crucificado. É um grito de dor e de aparente solidão.

Zombaria dos inimigos (vv.6-8):

O Salmo mostra que todos que passam balançam a cabeça em sinal de escárnio, dizendo:

“Confiou no Senhor; que ele o livre!”

No evangelho de Mateus 27:39-43, vemos as pessoas zombando de Jesus, dizendo:

“Se és Filho de Deus, desce da cruz!”

Mãos e pés transpassados (v.16):

“Transpassaram-me as mãos e os pés.”

Exatamente o que ocorreu na crucificação.

Vestes repartidas e sorteadas (v.18):

“Repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre a minha túnica.”

Nos evangelhos, lemos que os soldados lançaram sortes sobre as vestes de Jesus (Mateus 27:35; João 19:23-24).

No entanto, o Salmo 22 não termina em desespero. Conforme avançamos na leitura, vemos que o salmista, depois de derramar seu lamento, volta-se para a esperança. No versículo 24, declara:


“Pois não desprezou nem abominou a dor do aflito, nem escondeu dele o rosto, mas o ouviu quando lhe pediu socorro.”

Portanto, o grito de abandono não é o ponto final. É o início de uma jornada que culmina em confiança e louvor.


A trilogia messiânica: Salmos 22, 23 e 24

Costuma-se dizer que os Salmos 22, 23 e 24 formam uma espécie de trilogia relacionada ao Messias, o Bom Pastor:


Salmo 22 – Apresenta o Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas. Descreve o sofrimento de Jesus e Sua crucificação.

Salmo 23 – Mostra o Bom Pastor que continua a cuidar das ovelhas. “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará” (Salmo 23:1). Jesus prometeu estar conosco todos os dias, providenciando tudo o que precisamos, dando refrigério, consolo e direção.

Salmo 24 – Fala do Bom Pastor glorificado, que virá em triunfo. “Abram-se, ó portais, para que entre o Rei da Glória!” (Salmo 24:7-10). É a volta triunfante de Cristo, o dia em que Ele julgará e reinará em pleno esplendor.

Essa ligação dos três Salmos nos ajuda a entender o papel de Cristo: Ele morreu por nós (Sl 22), vive em nós (Sl 23) e voltará em glória para reinar (Sl 24).


Crises de fé: Por que elas acontecem?

Quando lemos o Salmo 22, notamos que crises e questionamentos podem acontecer mesmo aos mais fiéis. A diferença está em como lidamos com essas crises. O salmista expressa dor, mas não deixa de falar com Deus; pelo contrário, expõe tudo aquilo que sente.


O mesmo se dá conosco. Quando passamos por circunstâncias adversas — doenças, perdas, injustiças —, a reação natural é nos perguntarmos:


“Onde está Deus agora? Por que Ele não intervém?”

É nessa hora que precisamos aprender a ser honestos com o Senhor, pois Ele conhece nosso coração. Não há razão para fingir ou disfarçar a incredulidade. Deus não se ofende com nossas perguntas sinceras, mas convida-nos a trazer nossas angústias a Ele:


“Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós.” (1 Pedro 5:7)

Meu testemunho pessoal: a cirurgia e o tumor

Para ilustrar de forma prática como lidar com a crise de fé, compartilho um episódio que vivi há dois anos. Fui diagnosticado com um tumor no rim e tive de passar por uma cirurgia. O médico, embora excelente, não esperava a anatomia peculiar do meu rim, que tinha três artérias em vez de uma. Durante a operação, houve muita dificuldade em estancar o sangramento, e a cirurgia durou bem mais do que o previsto.


A recuperação foi dolorosa, mas a verdadeira surpresa veio depois, quando o resultado da biópsia mostrou que aquele tecido retirado não era o tumor de fato, ou seja, o problema permanecia. Percebi, então, que teria de enfrentar tudo novamente.


Nesse momento, é fácil cair num desespero e questionar: “Por que, Senhor? Onde está o teu cuidado?”. Mas, pela graça de Deus, veio ao meu coração uma paz indescritível. Percebi que minha vida estava, como sempre estivera, nas mãos do Senhor. Se Ele quisesse me curar, haveria de fazê-lo. Se não quisesse, Ele continuaria sendo Deus, e eu, Seu servo.


Meses depois, surgiu a possibilidade de fazer um procedimento de ablação por cateter, menos invasivo, que queimaria o tumor. Foi um sucesso. Pela misericórdia divina, hoje não há mais vestígio do tumor. Ainda assim, o maior milagre, para mim, foi ter encontrado essa paz de Deus antes mesmo de saber como terminaria a história.


A honestidade diante de Deus

A experiência do pai do menino possesso, em Marcos 9:23-24, reforça a importância de sermos transparentes com o Senhor. Jesus pergunta se ele crê, e o homem responde:


“Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé!”

Essa é uma oração profunda. A fé daquele pai estava misturada a dúvidas e temores, mas mesmo assim ele se volta para Jesus, confiando que só Ele pode ajudá-lo. Em nossas fraquezas, precisamos orar exatamente assim:


“Senhor, eu creio, mas ajuda-me onde ainda não creio o suficiente!”

Encorajamento final: da angústia à adoração

O Salmo 22, que começa com o grito “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, termina em triunfo, declarando que Deus não desprezou o aflito. A lógica do salmista é a seguinte:


Recordar os feitos de Deus no passado:

“Nossos pais confiaram em ti e os livraste” (Sl 22:4).

Lembrar como Deus já agiu na história — tanto na história bíblica quanto na nossa própria caminhada — fortalece a fé.

Reconhecer o caráter de Deus:

“Tu és santo” (Sl 22:3).

Mesmo em meio à angústia, o salmista louva a santidade e a fidelidade do Senhor.

Persistir em oração:

“Não te distancies de mim, força minha” (Sl 22:11).

O salmista não cessa de clamar. É no diálogo constante com Deus que a paz se estabelece.

Antecipar o louvor e a vitória:

“Proclamarei o teu nome aos meus irmãos; no meio da congregação te louvarei” (Sl 22:22).

Mesmo antes de ver a resposta final, o salmista declara que exaltará o nome de Deus.

Esse padrão se repete na vida de muitos servos ao longo das Escrituras. Jó, por exemplo, ainda no meio de todas as suas dores, afirma:


“Eu sei que o meu Redentor vive” (Jó 19:25).

E Paulo, em Romanos 8:37, assegura:


“Em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou.”

Conclusão

A crise de fé pode chegar de modo inesperado, seja nos momentos que antecedem um sermão, seja na dor de uma enfermidade, seja na solidão de uma prisão. Até Jesus, em Sua humanidade, expressou o sentimento de abandono na cruz. Contudo, o testemunho das Escrituras e da nossa própria experiência revela que Deus não nos abandona.


Salmos 22, 23 e 24 nos oferecem um panorama poderoso: Cristo sofreu na cruz para nos salvar (22), continua presente para nos conduzir como Bom Pastor (23) e voltará em glória para reinar (24). Ele não despreza a dor do aflito, mas o convida a continuar confiando e orando.


Se você se encontra numa “crise de fé” ou sente o silêncio de Deus, lembre-se de que a fé não é a ausência de dúvidas, mas a decisão de confiar, mesmo quando as circunstâncias parecem gritar o contrário. Como disse o pai do menino enfermo:


“Eu creio, ajuda-me na minha falta de fé!”

No final, o Salmo 22 nos garante que o Senhor “não desprezou nem repeliu a dor do aflito” e o ouviu quando clamou. Essa é a confiança que temos: Deus escuta nosso clamor e age no tempo certo. Assim, podemos descansar e declarar com segurança:


“Eu sei que o meu Redentor vive!”

Amém!

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