segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Do “Vinde” ao “Ide”: A Escola de Discípulos em Marcos 8


Este sermão percorre o arco do discipulado no Evangelho de Marcos: do “Vinde após mim” (Mc 1.17) ao “Ide por todo o mundo” (Mc 16.15). No centro do livro, Marcos 8 funciona como sala de aula de Jesus: compaixão que supre (segunda multiplicação dos pães), correção da incredulidade (fermento que turva a visão), cura em dois toques (visão que amadurece), duas perguntas que definem a fé (“Quem dizem que eu sou?… e vós, quem dizeis que eu sou?”), a confissão e o tropeço de Pedro, e o chamado à dupla cruz: a de Cristo e a do discípulo. A tese é simples e exigente: discipulado é processo, memória de “cestos sobrando”, correção amorosa e renúncia com alegria. Jesus não nos dá apenas um título; coloca-nos sob o seu Senhorio para vivermos a missão.

Sermão em Marcos 8 — Dois Chamados, Dois Toques e Duas Cruzes: Do “Vinde”ao “Ide” - Processo de Discipulado.


Por Bispo Ildo Mello

Convido você a abrir a Bíblia no Evangelho de Marcos, capítulo 8. O Evangelho de Marcos é o mais conciso dos quatro evangelhos — direto, objetivo e cheio de histórias. Logo no capítulo 1, temos aquele bendito chamado de Deus aos seus discípulos:
“Vinde após mim, e eu farei de vocês pescadores de homens” (Mc 1.17).
Ao longo dos 16 capítulos, Marcos mostra como Jesus trabalhou intensamente para transformar pescadores de peixes em pescadores de homens — um processo gradual de discipulado. Não foi “numa atacada só”; foi um caminho de convivência, ensino e transformação.
Chegando ao capítulo final, lemos:
“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15).
Entre esses dois extremos — “Vinde” e “Ide” — está todo o processo de formação de discípulos. Foram cerca de três anos e meio de convivência, ensino e prática missionária.
Esse Evangelho pode ser lido em uma única sentada: são apenas 16 capítulos. E bem no meio, o capítulo 8 é emblemático. Ele concentra, num único dia, elementos fundamentais do discipulado de Jesus. Um dia inteiro com Jesus— imagine o impacto disso!

1.⁠ ⁠A Segunda Multiplicação de Pães — Milagre e Cuidado
O capítulo 8 começa com a segunda multiplicação dos pães e peixes (Mc 8.1–10). Isso mostra que milagres grandes podem se repetir; Deus não está limitado a agir uma única vez.
A multidão já estava com Jesus há três dias em um lugar deserto, ouvindo sua voz, sem murmurar ou reclamar de fome (Mc 8.2). Isso é notável — talvez até um milagre silencioso: três dias de fome e nenhuma murmuração.
“Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4).
A Palavra os alimentava mais do que o pão. Quando estamos cheios de entusiasmo espiritual, muitas vezes esquecemos até de comer.
Jesus, porém, percebeu que eles estavam famintos e disse:
“Se eu os mandar para casa sem comer, desfalecerão pelo caminho” (Mc 8.3).
Ele viu que muitos vieram de longe, valorizou o sacrifício deles e providenciou o milagre.
“Portanto, meus amados irmãos, sejam firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o trabalho de vocês não é vão” (1Co 15.58).
Deus vê o nosso esforço. Assim como viu a oferta da viúva pobre (Mc 12.41–44), Ele vê cada gesto de fé e dedicação.
“Antes que a palavra me chegue à língua, tu, Senhor, já a conheces toda” (Sl 139.4).
“Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia” (Sl 46.1).
A multiplicação partiu de sete pães e alguns peixinhos (Mc 8.5–7), e todos comeram e se fartaram, sobrando sete cestos cheios (Mc 8.8).

2.⁠ ⁠Esquecimento e Incredulidade dos Discípulos
Logo em seguida, eles embarcam para outra margem, mas esquecem de levar pão (Mc 8.13–14). Apenas um pãozinho restou para doze homens. A discussão começa: “Quem esqueceu o pão?”
Jesus os repreende:
“Por que vocês estão discutindo sobre não terem pão? Ainda não compreendem nem percebem? Têm o coração endurecido?” (Mc 8.17).
Os fariseus também tinham acabado de exigir um sinal, mesmo depois de verem milagres (Mc 8.11–12). Jesus alerta:
“Cuidado com o fermento dos fariseus” (Mc 8.15).
Há pessoas que, por mais sinais que vejam, permanecem incrédulas (cf. Mt 12.38–39).
Jesus relembra:
“Quando repartiu cinco pães entre cinco mil, quantos cestos vocês recolheram?” — “Doze” — “E quando repartiu sete pães entre quatro mil, quantos cestos sobraram?” — “Sete” (Mc 8.19–20).
Os milagres de Jesus têm função pedagógica — eles ensinam quem Ele é e em quem devemos confiar.

3.⁠ ⁠O Cego de Betsaida — Dois Toques
Ao chegar a Betsaida, Jesus encontra um cego (Mc 8.22–26). Curiosamente, este é o único milagre de cura em dois estágios: primeiro, Jesus toca e o homem vê de forma turva, “como árvores que andam” (Mc 8.24). Depois, um segundo toque o faz ver claramente (Mc 8.25).
Pouco antes, Jesus havia perguntado aos discípulos:
“Ainda não percebem nem compreendem? Têm olhos e não veem?” (Mc 8.17–18).
O milagre físico do cego reflete a realidade espiritual dos discípulos: eles já tinham recebido um primeiro toque — já viam mais do que antes —, mas ainda não enxergavam plenamente.
Às vezes, também precisamos de um segundo toque de Jesus para enxergar com clareza espiritual.

4.⁠ ⁠Duas Perguntas de Jesus — Confissão de Pedro
Depois disso, Jesus pergunta aos discípulos:
“Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8.27).
Eles respondem: “Alguns dizem que és João Batista; outros, Elias; e outros, um dos profetas” (Mc 8.28). A multidão via Jesus com bons olhos, mas de forma ainda imperfeita.
Então Jesus pergunta:
“E vocês, quem dizem que eu sou?” (Mc 8.29).
Pedro responde:
“Tu és o Cristo” (Mc 8.29).
Nos evangelhos paralelos, acrescenta-se: “o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16).
Jesus declara:
“Não foi carne nem sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16.17).
Essa é a maior de todas as confissões de fé: reconhecer Jesus não apenas como profeta, mas como o Messias, o Filho de Deus (Jo 1.14; Jo 20.31).

5.⁠ ⁠A Cruz de Cristo e a Cruz do Discípulo
Após essa confissão, Jesus revela:
“O Filho do Homem precisa sofrer muitas coisas, ser rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8.31).
Pedro, influenciado por expectativas humanas de glória imediata, tenta repreender Jesus (Mc 8.32). Mas Jesus o repreende com firmeza:
“Arreda, Satanás! Porque você não cogita das coisas de Deus, e sim das dos homens” (Mc 8.33).
Jesus havia enfrentado essa mesma tentação no deserto, quando o diabo lhe ofereceu glória sem cruz (Mt 4.1–11). Mas o caminho do Reino passa inevitavelmente pela cruz.
O apóstolo Paulo reforça:
“Se esperamos em Cristo só para esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens” (1Co 15.19).
“Porque a vocês foi concedida a graça de sofrer por Cristo” (Fp 1.29).
Então Jesus estende o chamado a todos:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.34–36).

6.⁠ ⁠O Custo do Discipulado — O Chamado Radical de Cristo
Nesse ponto, me vem à memória Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa, poeta português, tem muitos poemas que falam sobre ideais grandiosos, coragem e sacrifício. Em um de seus poemas mais conhecidos, ele escreve:
“Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso mar?
Valeu a pena.
Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Porque quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor.”
O que ele está dizendo é que todo ideal exige sacrifício. O povo português, um país pequeno, foi capaz de grandes feitos: conquistou terras, dobrou o Cabo da Boa Esperança, navegou por mares desconhecidos. Para isso, muita coisa foi deixada para trás: noivas ficaram sem casar, sonhos foram sacrificados, famílias foram separadas. Havia um preço para conquistar o mar.
Em outro poema — sobre Dom Sebastião, também conhecido como Quinto Império — Pessoa escreve:
“Louco, sim, louco porque quis grandeza.
Qual a sorte a não dar?
Não coube em mim minha certeza.
Por isso, onde o areal está,
ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura outros que me aturem como o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem, mais do que a besta sadia,
cadáver adiado que procria.”
Essa poesia fala da coragem de abandonar a terra firme — o areal — e se lançar ao mar, movido por um ideal maior. Pessoa diz que, sem essa “loucura santa”, sem viver por um propósito mais alto, o ser humano se torna apenas “um cadáver adiado que procria”.
Mas aqui está a diferença essencial:
👉 Os portugueses lutaram por mares e glórias temporais, mas Jesus nos chama a seguir um ideal eterno.
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34).
“Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.36).
O ideal português foi grandioso, mas o ideal cristão é infinitamente superior. Eles atravessaram oceanos para conquistar terras; Jesus nos chama a negar a nós mesmos para herdar o Reino de Deus. Eles buscaram impérios passageiros; Jesus nos chama a participar de um Reino que jamais passará. Eles lutaram por glória humana; Jesus nos chama para a glória eterna.
Seguir a Cristo, portanto, é assumir essa “loucura santa” — sair do conforto, deixar o “areal firme” e lançar-se no mar da fé, confiando no Senhor. Não por poder, glória ou fama, mas por vida eterna.


Conclusão
O capítulo 8 de Marcos nos apresenta dois chamados — “Vinde após mim” (Mc 1.17) e “Ide por todo o mundo” (Mc 16.15);
dois toques — um para começar a ver e outro para enxergar claramente (Mc 8.22–25);
e duas cruzes — a de Cristo e a nossa (Mc 8.34).
Seguir Jesus significa ver com clareza espiritual crescente, confessar quem Ele realmente é e carregar a cruz com fidelidade.
“De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.36).
“Só tu tens as palavras de vida eterna” (Jo 6.68).

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