Este sermão percorre o arco do discipulado no Evangelho de Marcos: do “Vinde após mim” (Mc 1.17) ao “Ide por todo o mundo” (Mc 16.15). No centro do livro, Marcos 8 funciona como sala de aula de Jesus: compaixão que supre (segunda multiplicação dos pães), correção da incredulidade (fermento que turva a visão), cura em dois toques (visão que amadurece), duas perguntas que definem a fé (“Quem dizem que eu sou?… e vós, quem dizeis que eu sou?”), a confissão e o tropeço de Pedro, e o chamado à dupla cruz: a de Cristo e a do discípulo. A tese é simples e exigente: discipulado é processo, memória de “cestos sobrando”, correção amorosa e renúncia com alegria. Jesus não nos dá apenas um título; coloca-nos sob o seu Senhorio para vivermos a missão.
Sermão em Marcos 8 — Dois Chamados, Dois Toques e Duas Cruzes: Do “Vinde”ao “Ide” - Processo de Discipulado.
Por Bispo Ildo Mello
Convido você a abrir a Bíblia no Evangelho de Marcos, capítulo 8. O Evangelho de Marcos é o mais conciso dos quatro evangelhos — direto, objetivo e cheio de histórias. Logo no capítulo 1, temos aquele bendito chamado de Deus aos seus discípulos:
“Vinde após mim, e eu farei de vocês pescadores de homens” (Mc 1.17).
Ao longo dos 16 capítulos, Marcos mostra como Jesus trabalhou intensamente para transformar pescadores de peixes em pescadores de homens — um processo gradual de discipulado. Não foi “numa atacada só”; foi um caminho de convivência, ensino e transformação.
Chegando ao capítulo final, lemos:
“Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16.15).
Entre esses dois extremos — “Vinde” e “Ide” — está todo o processo de formação de discípulos. Foram cerca de três anos e meio de convivência, ensino e prática missionária.
Esse Evangelho pode ser lido em uma única sentada: são apenas 16 capítulos. E bem no meio, o capítulo 8 é emblemático. Ele concentra, num único dia, elementos fundamentais do discipulado de Jesus. Um dia inteiro com Jesus— imagine o impacto disso!
1. A Segunda Multiplicação de Pães — Milagre e Cuidado
O capítulo 8 começa com a segunda multiplicação dos pães e peixes (Mc 8.1–10). Isso mostra que milagres grandes podem se repetir; Deus não está limitado a agir uma única vez.
A multidão já estava com Jesus há três dias em um lugar deserto, ouvindo sua voz, sem murmurar ou reclamar de fome (Mc 8.2). Isso é notável — talvez até um milagre silencioso: três dias de fome e nenhuma murmuração.
“Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4).
A Palavra os alimentava mais do que o pão. Quando estamos cheios de entusiasmo espiritual, muitas vezes esquecemos até de comer.
Jesus, porém, percebeu que eles estavam famintos e disse:
“Se eu os mandar para casa sem comer, desfalecerão pelo caminho” (Mc 8.3).
Ele viu que muitos vieram de longe, valorizou o sacrifício deles e providenciou o milagre.
“Portanto, meus amados irmãos, sejam firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o trabalho de vocês não é vão” (1Co 15.58).
Deus vê o nosso esforço. Assim como viu a oferta da viúva pobre (Mc 12.41–44), Ele vê cada gesto de fé e dedicação.
“Antes que a palavra me chegue à língua, tu, Senhor, já a conheces toda” (Sl 139.4).
“Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia” (Sl 46.1).
A multiplicação partiu de sete pães e alguns peixinhos (Mc 8.5–7), e todos comeram e se fartaram, sobrando sete cestos cheios (Mc 8.8).
2. Esquecimento e Incredulidade dos Discípulos
Logo em seguida, eles embarcam para outra margem, mas esquecem de levar pão (Mc 8.13–14). Apenas um pãozinho restou para doze homens. A discussão começa: “Quem esqueceu o pão?”
Jesus os repreende:
“Por que vocês estão discutindo sobre não terem pão? Ainda não compreendem nem percebem? Têm o coração endurecido?” (Mc 8.17).
Os fariseus também tinham acabado de exigir um sinal, mesmo depois de verem milagres (Mc 8.11–12). Jesus alerta:
“Cuidado com o fermento dos fariseus” (Mc 8.15).
Há pessoas que, por mais sinais que vejam, permanecem incrédulas (cf. Mt 12.38–39).
Jesus relembra:
“Quando repartiu cinco pães entre cinco mil, quantos cestos vocês recolheram?” — “Doze” — “E quando repartiu sete pães entre quatro mil, quantos cestos sobraram?” — “Sete” (Mc 8.19–20).
Os milagres de Jesus têm função pedagógica — eles ensinam quem Ele é e em quem devemos confiar.
3. O Cego de Betsaida — Dois Toques
Ao chegar a Betsaida, Jesus encontra um cego (Mc 8.22–26). Curiosamente, este é o único milagre de cura em dois estágios: primeiro, Jesus toca e o homem vê de forma turva, “como árvores que andam” (Mc 8.24). Depois, um segundo toque o faz ver claramente (Mc 8.25).
Pouco antes, Jesus havia perguntado aos discípulos:
“Ainda não percebem nem compreendem? Têm olhos e não veem?” (Mc 8.17–18).
O milagre físico do cego reflete a realidade espiritual dos discípulos: eles já tinham recebido um primeiro toque — já viam mais do que antes —, mas ainda não enxergavam plenamente.
Às vezes, também precisamos de um segundo toque de Jesus para enxergar com clareza espiritual.
4. Duas Perguntas de Jesus — Confissão de Pedro
Depois disso, Jesus pergunta aos discípulos:
“Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8.27).
Eles respondem: “Alguns dizem que és João Batista; outros, Elias; e outros, um dos profetas” (Mc 8.28). A multidão via Jesus com bons olhos, mas de forma ainda imperfeita.
Então Jesus pergunta:
“E vocês, quem dizem que eu sou?” (Mc 8.29).
Pedro responde:
“Tu és o Cristo” (Mc 8.29).
Nos evangelhos paralelos, acrescenta-se: “o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16).
Jesus declara:
“Não foi carne nem sangue que te revelaram isso, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16.17).
Essa é a maior de todas as confissões de fé: reconhecer Jesus não apenas como profeta, mas como o Messias, o Filho de Deus (Jo 1.14; Jo 20.31).
5. A Cruz de Cristo e a Cruz do Discípulo
Após essa confissão, Jesus revela:
“O Filho do Homem precisa sofrer muitas coisas, ser rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8.31).
Pedro, influenciado por expectativas humanas de glória imediata, tenta repreender Jesus (Mc 8.32). Mas Jesus o repreende com firmeza:
“Arreda, Satanás! Porque você não cogita das coisas de Deus, e sim das dos homens” (Mc 8.33).
Jesus havia enfrentado essa mesma tentação no deserto, quando o diabo lhe ofereceu glória sem cruz (Mt 4.1–11). Mas o caminho do Reino passa inevitavelmente pela cruz.
O apóstolo Paulo reforça:
“Se esperamos em Cristo só para esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens” (1Co 15.19).
“Porque a vocês foi concedida a graça de sofrer por Cristo” (Fp 1.29).
Então Jesus estende o chamado a todos:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.34–36).
6. O Custo do Discipulado — O Chamado Radical de Cristo
Nesse ponto, me vem à memória Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa, poeta português, tem muitos poemas que falam sobre ideais grandiosos, coragem e sacrifício. Em um de seus poemas mais conhecidos, ele escreve:
“Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso mar?
Valeu a pena.
Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Porque quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor.”
O que ele está dizendo é que todo ideal exige sacrifício. O povo português, um país pequeno, foi capaz de grandes feitos: conquistou terras, dobrou o Cabo da Boa Esperança, navegou por mares desconhecidos. Para isso, muita coisa foi deixada para trás: noivas ficaram sem casar, sonhos foram sacrificados, famílias foram separadas. Havia um preço para conquistar o mar.
Em outro poema — sobre Dom Sebastião, também conhecido como Quinto Império — Pessoa escreve:
“Louco, sim, louco porque quis grandeza.
Qual a sorte a não dar?
Não coube em mim minha certeza.
Por isso, onde o areal está,
ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura outros que me aturem como o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem, mais do que a besta sadia,
cadáver adiado que procria.”
Essa poesia fala da coragem de abandonar a terra firme — o areal — e se lançar ao mar, movido por um ideal maior. Pessoa diz que, sem essa “loucura santa”, sem viver por um propósito mais alto, o ser humano se torna apenas “um cadáver adiado que procria”.
Mas aqui está a diferença essencial:
👉 Os portugueses lutaram por mares e glórias temporais, mas Jesus nos chama a seguir um ideal eterno.
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34).
“Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.36).
O ideal português foi grandioso, mas o ideal cristão é infinitamente superior. Eles atravessaram oceanos para conquistar terras; Jesus nos chama a negar a nós mesmos para herdar o Reino de Deus. Eles buscaram impérios passageiros; Jesus nos chama a participar de um Reino que jamais passará. Eles lutaram por glória humana; Jesus nos chama para a glória eterna.
Seguir a Cristo, portanto, é assumir essa “loucura santa” — sair do conforto, deixar o “areal firme” e lançar-se no mar da fé, confiando no Senhor. Não por poder, glória ou fama, mas por vida eterna.
Conclusão
O capítulo 8 de Marcos nos apresenta dois chamados — “Vinde após mim” (Mc 1.17) e “Ide por todo o mundo” (Mc 16.15);
dois toques — um para começar a ver e outro para enxergar claramente (Mc 8.22–25);
e duas cruzes — a de Cristo e a nossa (Mc 8.34).
Seguir Jesus significa ver com clareza espiritual crescente, confessar quem Ele realmente é e carregar a cruz com fidelidade.
“De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8.36).
“Só tu tens as palavras de vida eterna” (Jo 6.68).
Nenhum comentário:
Postar um comentário