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As Rivais

As Rivais

Por Bispo Ildo Mello


O Livro de Gênesis mostra a vida como ela é e não maquia a face de seus personagens. Os próprios patriarcas do povo hebreu são descritos como seres humanos normais sujeitos a muitos erros. Conflitos familiares são expostos com riqueza de detalhes, tais como os que envolveram Caim e Abel, Abraão e Ló, Sara e Hagar, Esaú e Jacó, José e seus irmãos. Veremos a seguir um embate muito interessante que aconteceu entre duas irmãs, Lia e Raquel, que, por uma série de circunstâncias, acabaram se tornando esposas de Jacó e passaram a disputar pelo coração de seu amado.

Examinando os capítulos 29 e 30 de Gênesis, vemos o seguinte contraste entre estas duas irmãs o que ajuda a entender os motivos de tanta rivalidade: Lia era mais velha que Raquel (29.16); Lia era feia (29.17) enquanto a Raquel era linda (29.17); De Lia, não ouvimos que ela tivesse ocupação, quanto a Raquel é dito que era pastora (29.9); Lia não recebe a mesma distinção que Raquel, que possuía notoriedade na sociedade (29.6); O texto revela poucos detalhes de Lia (29.16,17), enquanto Raquel é descrita com riqueza de detalhes (29.9- 10; 30.16-18); Para piorar a situação, é dito que Jacó amava a Raquel e que desprezava a Lia (29.18-31), de modo que ele não trabalhou nem uma hora por Lia, mas foi capaz de trabalhar 14 anos para conquistar o direito de se casar com Raquel (29.30). Por fim, observamos que nenhum diálogo é travado entre Jacó e Lia; Lia é totalmente ignorada; nenhuma emoção é externada a ela, nenhum olhar é descrito, em contrapartida, Jacó expressa muito carinho e dá muita atenção a Raquel, pois é dito que ele a viu, a ajudou, a beijou, chorou em sua presença, falou-lhe e a amou (29.10).

Em meio aos altos e baixos desta disputa, é interessante observarmos o uso que as duas irmãs fazem dos termos hebraicos Elohim e Adonai. Embora ambos sejam apropriados para se referir a Deus, nota-se uma curiosa peculiaridade do uso destes termos no livro de Gênesis, a começar pelo capítulo 1, que usa Elohim, que significa Deus, para descrevê-lo como criador do Universo, enquanto o capitulo dois usa o termo Adonai para falar especificamente da criação do ser humano, dando a entender uma noção de maior intimidade e proximidade. Estaria o autor se valendo destes termos para ressaltar os aspectos divinos de transcendência e imanência? Bem, parece que sim, pois o uso destes termos nos relatos do confronto das irmãs Lia e Raquel não é nem um pouco aleatório como veremos a seguir.

No início do conflito, vemos Lia muito abatida e humilhada por ter sido desprezada por Jacó. Quebrantada, Lia busca a proximidade e o auxílio do Senhor, que vem ao seu encontro para socorrê-la. Repare que Adonai é o termo usado (29.31-35). Enquanto isto, Raquel está muito segura de si, de suas habilidades e vantagens naturais. Sentindo-se auto-suficiente, não demonstra carecer tanto assim do auxílio e da presença de Deus. Tal noção de distância é expressa no uso do termo Elohim (30.6).

Mas, a situação vai se inverter. Raquel, quando se vê em apuros por ser estéril, não busca a ajuda de Deus, pois ela prefere confiar em seus próprios planos e soluções. Raquel, invejosa, apela para uma espécie de barriga de aluguel, fazendo uso de sua serva (30.3). E Lia ao ver a estratégia da irmã, não querendo ficar para trás, faz uso do mesmo recurso carnal (30.9) e por fim começa a não sentir tanto a necessidade da presença de Deus, passando, assim, a se referir a ele através do termo Elohim, o que sugere uma noção de distanciamento de Deus (30.18,20).

Então, durante a disputa, ambas se afastam de Deus a medida que passam a agir por conta própria, de acordo com suas próprias agendas. Numa certa altura do campeonato, Raquel cobiça as mandrágoras que Lia recebera de presente de seu filho Ruben. Raquel, supersticiosa, acreditava que tais mandrágoras pudessem curá-la para que ela fosse capaz de engravidar (30.15- 16). Raquel, desesperada, chega a propor um negócio a Lia e acaba se dando muito mal, pois o feitiço voltou-se contra o feiticeira, pois Raquel continuou estéril e Lia acabou dando à luz a mais dois filhos.

Então, no final da história, arrasada e quebrantada, Raquel deixa sua auto-suficiência de lado e busca a proximidade e a ajuda do Senhor, e o termo Adonai é usado para reforçar esta idéia de proximidade (30.24). O Senhor se compadece de Raquel, que concebe e dá à luz ao grande José. “Perto está o Senhor dos que tem o coração quebrantado, e salva os de espírito oprimido.” (Sl 34.18; II Co 12.9-10).

Nesta história, ora Deus está do lado de Lia, ora está do lado de Raquel. Enquanto Jacó preferia Raquel por conta de sua aparência física, Deus está sempre do lado daquele que tem o coração contrito e quebrantado.

Podemos estar muito próximos de Deus, mas as pressões da sociedade nos conduzem à competição, stress, desejo de assumir o controle da própria vida, deixando de lado o Senhor. Nossa percepção dEle é, então, alterada (sentimento de distância). O Quebrantado tende a buscar a proximidade e o auxílio de Deus enquanto que o auto-suficiente confia mais em si e em seus recursos e tende a se manter mais distante de Deus. "Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Sujeitai-vos, pois, a Deus... Chegai-vos a Deus e Ele se chegará a vós outros... Humilhai-vos perante o Senhor e Ele vos exaltará..." (Tg 4:6-10).

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