Legendários: um alerta pastoral sobre o que parece ser e o que de fato é
Vivemos um tempo em que muitos homens se sentem desorientados quanto ao seu papel no lar, na igreja e na sociedade. Essa crise de identidade tem dado lugar a uma busca crescente por respostas, pertencimento e significado. Nesse contexto, surgem movimentos como o Legendários, que prometem restaurar o "verdadeiro homem" por meio de retiros espirituais, jornadas em meio à natureza, e experiências de "quebrantamento" exclusivas para o público masculino.
A proposta pode parecer atrativa à primeira vista. Os encontros são promovidos em locais isolados, com atividades desafiadoras, falas impactantes, forte apelo emocional e espiritualidade embalada em linguagem viril. Homens são convidados a subir a montanha, reencontrar seu "propósito original" e retornar como lendas vivas. Mas é precisamente nesse pacote sedutor que precisamos fazer uma pausa e perguntar: que tipo de homem está sendo formado ali? E quais riscos estão embutidos nessa jornada?
O modelo de homem que o Evangelho não propõe
O grande perigo do movimento Legendários é a tentativa de revestir com linguagem espiritual um modelo masculino antigo, hierárquico e excludente. O "homem legendário" é descrito como o herói inquebrantável, provedor, dominador, caçador, chefe de família por excelência. Em sua roupagem "gospel", ele é forte na fé, mas também é o macho alfa. A lógica patriarcal volta à cena, agora com gritos de guerra, cruzes nas costas e suposta restauração de autoridade espiritual.
Contudo, o Cristo que nos chama à masculinidade não nos oferece a espada, mas a cruz (Lc 9.23). Jesus chorou (Jo 11.35), foi quebrantado (Is 53.5), serviu aos outros (Jo 13.14-15) e nos ensinou que o maior é o que serve (Mt 23.11). Um homem segundo o coração de Deus é aquele que ama, que cuida, que ouve, que se humilha diante do Senhor. Esse tipo de masculinidade não precisa ser performada em trilhas ou selada por ritos secretos, mas cultivada no dia a dia, com honestidade, vulnerabilidade e dependência de Deus.
A espiritualidade que exclui é contrária ao Reino
Outro ponto alarmante é a exclusão prática de mulheres nos espaços centrais do movimento. Não apenas por serem retiradas dos retiros, mas pelo discurso implícito de que o crescimento espiritual masculino depende da ausência do feminino. A masculinidade ali proposta parece só se sustentar no distanciamento da mulher, como se esta fosse obstáculo para o "florescimento do homem de Deus".
Esse tipo de segregação contradiz a natureza do Corpo de Cristo, onde homens e mulheres, em complementaridade e mutualidade, edificam juntos (Gl 3.28; 1Co 12.12). Jesus incluiu mulheres em seu discipulado e ministério. O Reino não é uma trincheira de gênero, mas uma mesa de partilha.
Um discipulado elitizado e inacessível
Também não podemos ignorar o alto custo para participar de tais retiros. As cifras variam de centenas a dezenas de milhares de reais. Isso exclui a imensa maioria dos homens comuns, pobres, negros, da periferia. Que tipo de espiritualidade é essa que só pode ser vivida por quem pode pagar? O Evangelho é para todos. Jesus não cobrava ingresso para curar ou ensinar (Is 55.1-2).
Aliás, a verdadeira transformação espiritual — a metanoia — não pode ser comprada. Ela é fruto do arrependimento, da graça e do agir do Espírito Santo. Ela se dá na vida comum, no cotidiano, no secreto. "Não por força, nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor" (Zc 4.6).
A pressão de ser inquebrantável
Talvez o aspecto mais perigoso do Legendários seja o reforço do mito do homem inquebrantável — aquele que não pode falhar, chorar ou demonstrar fragilidade. Essa ideia tem alimentado um padrão tóxico de masculinidade que aprisiona os homens em um ideal inalcançável de força, sucesso e controle emocional. Não é coincidência que os índices de suicídio entre homens sejam tão elevados: muitos estão sobrecarregados por exigências sociais que os impedem de demonstrar suas dores ou pedir ajuda. Em vez de cura, esse tipo de expectativa gera adoecimento.
O discipulado de Jesus, no entanto, nos chama a algo completamente diferente. Jesus nos convida não à perfeição performática, mas à vulnerabilidade redentora. Ele mesmo foi homem de dores, que chorou, que se deixou tocar, que se angustiou no Getsêmani (Is 53.3; Jo 11.35; Mt 26.38). A nossa força está justamente em reconhecer nossa fraqueza e confiar na suficiência da graça de Deus (2Co 12.9-10). A verdadeira hombridade é a de José, que preferiu fugir do pecado e cuidar da família; a de Pedro, que caiu, chorou e foi restaurado; a de Paulo, que serviu ao Senhor com lágrimas. Hombridade, aos olhos de Deus, é compaixão, mansidão, fidelidade, serviço — tudo aquilo que vemos encarnado na pessoa de Cristo. Esse é o modelo que a igreja deve promover.
O que os homens da igreja realmente precisam
Homens da igreja não precisam de mais "coaching evangélico" nem de uma espiritualidade à parte das mulheres, muito menos de um teatro de força e virilidade. O que precisamos é de escuta, de relações sinceras, de modelos acessíveis, de partilha de fardos (Gl 6.2), de humildade, de arrependimento e de compaixão.
Precisamos de retiros? Talvez. Mas que sejam acessíveis, inclusivos, verdadeiramente espirituais, onde homens e mulheres cresçam juntos, onde possamos nos despir das armaduras e ser quem realmente somos diante de Deus: vasos de barro (2Co 4.7), que carregam um tesouro que não vem de nós.
Que o Senhor nos livre de projetos religiosos que travestem velhos estereótipos com linguagem piedosa. E que nos ajude a formar homens segundo Cristo: sensíveis, justos, piedosos, humildes, cheios do Espírito, servos do Reino, maridos fiéis, pais amorosos, irmãos que sabem chorar com os que choram.
Mais poderia ser dito: sobre os riscos físicos das práticas extenuantes, como já revelado em caso de morte durante trilha; sobre a falta de transparência e uso de sigilo nos retiros; sobre a linguagem militarizada e triunfalista que contrasta com o evangelho da cruz; sobre a instrumentalização política do movimento em câmaras municipais; e sobre a ausência de uma agenda clara contra a violência e as desigualdades de gênero. Tudo isso reforça a necessidade de discernimento. Como pastores e lideranças, devemos ser vigilantes: não é porque algo parece espiritual que de fato provém do Espírito.
Essa sim é uma lenda que vale a pena viver. A lenda da graça. A lenda do Cordeiro. A lenda da cruz.
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