quinta-feira, 15 de maio de 2025

Liberdade Cristã e Amor ao Próximo: E Quanto à Comida dos Ídolos?

O Cristão Pode Comer Alimentos Sacrificados aos Ídolos?


Por Bispo Ildo Mello

Sabe quando você anda pela cidade e tem a sensação de que tudo — desde o bar da esquina até o açougue — pode ter sido dedicado a algum deus pagão? Imagine que o açougueiro da sua rua é o tio Fulano de Tal, que sacrificou um boi aos deuses dele e deixou a cabeça desse animal ali na geladeira, misturada às outras carnes, para atrair mais clientes. Ou pense naquele convite para jantar na casa de um amigo cristão que é idólatra e você fica ressabiado de a comida esteve envolvida em algum ritual sagrado. E até aquele apartamento que você vai alugar ou o carro que pretende comprar: será que eles já foi consagrados a uma entidade espiritual estranha?

Tudo bem ter essas dúvidas — aliás, era exatamente isso que se passava na cabeça dos irmãos da igreja primitiva, em Corinto e Éfeso, rodeados de templos a Diana, Apolo e outros deuses. Foi para esse cenário que Paulo escreveu suas cartas, dando orientações superpráticas. Vamos ver o que ele realmente disse e como isso vale para a gente hoje.

Desde os primeiros anos da Igreja, a prática de oferecer carnes (e outros alimentos) a divindades pagãs, antes de serem vendidas ou servidas, suscitou um dilema entre liberdade e responsabilidade cristã. Em locais como Corinto, muitos recém-convertidos temiam que o simples ato de comer tais alimentos os afastasse de Deus ou trouxesse consigo alguma maldição. Outros, porém, já entendiam que “um ídolo nada é no mundo” e que “a comida não nos torna aceitáveis diante de Deus” (1Co 8.4,8). De acordo com essa compreensão, os ídolos não possuem existência real nem poder espiritual para contaminar o crente. Esse entendimento liberta da superstição de que qualquer alimento oferecido a deuses poderia, por si só, prejudicar o crente.

Paulo se alinha a esses cristãos mais maduros ao defender a liberdade em Cristo, declarando que “todas as coisas são lícitas” (1Co 10.23). Pois, se Cristo nos libertou, verdadeiramente somos livres! Afinal, “há um só Deus, o Pai… e um só Senhor, Jesus Cristo” (1Co 8.6). Ainda assim, ele adverte: “o conhecimento incha, mas o amor edifica” (1Co 8.1) e, em tom pastoral, declara: “Se a comida causar tropeço ao meu irmão, jamais comerei carne, para não escandalizar-lo” (1Co 8.13). Desse modo, a liberdade de comer não fica atada a proibições alimentares, mas é balizada pelo amor que renuncia a direitos em favor da edificação dos irmãos.
Em 1 Coríntios 10, Paulo aprofunda a questão ao tratar de refeições realizadas dentro de templos pagãos. O apóstolo diferencia entre a carne comprada no mercado, cujo consumo (embora livre) requer consideração pastoral, e o banquete litúrgico idólatra, que compromete a fidelidade exclusiva ao Senhor. Quem participa de um sacrifício pagão torna-se “participante do altar” e, simbolicamente, da adoração a “demônios, e não a Deus” (1Co 10.18–20). Assim, deve-se evitar “misturar o cálice do Senhor com o cálice dos demônios” (1Co 10.21).

Vale destacar que Paulo, nessa mesma linha, afirma: “Coma de tudo o que se vende no açougue, sem indagar nada por motivo da consciência” (1Co 10.25 ). Ao dizer isso, ele demonstra que aquilo que foi oferecido a deuses sem existência não retém força espiritual alguma, pois “um ídolo nada é no mundo” (1Co 8.4). Uma carne comprada no mercado já não pertence ao culto pagão, mas ao cotidiano do crente. Não questionar protege a consciência do irmão. Perguntar se a carne veio de um sacrifício idolátrico pode sugerir que o alimento é imundo, levando o irmão de fé mais fraco a duvidar da própria liberdade e a tropeçar em suas convicções (1Co 8.9; Rm 14.13). Ao consumir sem indagar, expressamos confiança na soberania de Deus sobre todas as coisas criadas e reconhecemos o alimento como bênção divina, com ações de graças (1Tm 4.4–5). Em suma, esse mandamento convida o crente a viver sua liberdade sem temores infundados, protegendo a edificação mútua e celebrando cada refeição como ato de adoração.

Depois de esclarecer essa distinção em 1 Coríntios 10, Paulo retoma o tema sob outro ângulo em Romanos 14–15, abordando as diferenças de dieta e a observância de dias sagrados. Ele lembra que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17) e exorta: “Recebei ao que é fraco na fé…” (Rm 14.1). Enquanto “um crê que de tudo se pode comer, outro, que é fraco, come legumes” (Rm 14.2). Por isso, Paulo orienta: “Não julgueis o vosso irmão… tudo o que não procede de fé é pecado” (Rm 14.13,23). Ou seja, nossa liberdade não deve ser mera expressão de conhecimento, mas sim um caminho de edificação mútua, evitando causar tristeza ou escândalo aos irmãos (Rm 14.15).

Antes mesmo de Paulo abordar esse tema, o Concílio de Jerusalém (At 15) aplicara o mesmo princípio: para evitar escândalo e preservar a comunhão entre judeus e gentios, Tiago recomendou que os cristãos de origem gentílica se abstivessem de “contaminações dos ídolos, das relações sexuais ilícitas, da carne sufocada e do sangue” (At 15.20,29). Tais medidas não instituíam um novo legalismo, mas visavam proteger a unidade entre grupos cujos hábitos cerimoniais diferiam amplamente. A conjunção “pois” (gr. γάρ), no início de Atos 15.21, explica: “em cada cidade” ainda havia judeus que guardavam estritamente aquelas prescrições e as consideravam essenciais ao culto.

É importante ressaltar que, desde o Concílio (At 15.19–21), os apóstolos não trataram as prescrições cerimoniais como obrigações perpétuas para a Igreja, mas como medidas pastorais para sustentar a comunhão entre judeus e gentios. Paulo desenvolve esse princípio em Colossenses 2.16–17, afirmando que ninguém deve ser julgado “por causa de comida, ou de bebida, ou dia de festa…”, pois isso era “sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo”. Em Romanos 14.14, ele reforça: “Sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesma impura; salvo para aquele que assim a considera”. E reitera que “tudo é puro, mas é mal para o homem que come com escândalo” (Rm 14.20), sublinhando que a liberdade não elimina a responsabilidade de não provocar tropeço no próximo.

Além disso, em Atos 10.9–16, Pedro recebe uma visão divina para “matar e comer” animais impuros, indicando o fim das barreiras cerimoniais entre judeus e gentios. Seguindo esse raciocínio, Paulo ensina: “tudo é lícito, mas nem tudo convém; tudo é lícito, mas nem tudo edifica” (1Co 10.23–24). Em outras palavras, a liberdade cristã permite o consumo de carne — até mesmo aquela sacrificada a ídolos — desde que não haja contexto de culto pagão e não se ofenda a consciência dos irmãos mais fracos.

No conjunto, a maior parte dos cristãos, tomando o exemplo apostólico, não adotou como norma permanente o costume judaico de evitar carne sufocada ou demais práticas cerimoniais. Compreendeu-se que esses preceitos eram “sombra” cumprida em Cristo (Cl 2.17) e que a verdadeira lei do cristão se resume ao amor que edifica (Rm 13.8; 1Co 8.1; 10.31).

Em suma, Paulo mostra que a liberdade em Cristo vai além da ausência de regras: manifesta-se no amor que abre mão do próprio direito em favor do irmão (1Co 8.13; Rm 15.1), na fidelidade exclusiva a Jesus (1Co 10.21,31) e no compromisso de viver cada escolha, inclusive o que compramos no mercado, como ato de adoração e serviço mútuo (Gl 5.13–14; Ef 4.32).

Ao lidarmos com a questão de comer alimentos sacrificados a ídolos — ou qualquer prática potencialmente controversa — temos uma oportunidade de exercer essa “liberdade responsável”, sempre sob a régua do amor. A maturidade espiritual aparece quando colocamos o bem do próximo acima de nossos desejos e direitos, reconhecendo que “todas as coisas vêm de Deus” e podem ser desfrutadas com ações de graças (1Tm 4.4–5; 1Ts 5.18). Também somos chamados à paciência e ao acolhimento, respeitando a consciência alheia e zelando pela unidade do Corpo de Cristo (Rm 14.19; Ef 4.3). Assim, refletimos ao mundo o caráter de Jesus — que, por amor, renunciou a Si mesmo em benefício de todos (Fp 2.5–8) — e glorificamos a Deus na harmonia e no cuidado para com os irmãos.

Um comentário:

  1. Excelente comentário. Explicação teológica de uma estrutura alinhada com o verdadeiro evangelho.

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